quinta-feira, 30 de abril de 2020

Moda New Wave


Na primeira metade dos anos oitenta inventaram uma moda de gosto bem duvidoso, imitando o jeito e gosto também duvidoso dos surfistas, lançaram a moda new wave, que nada mais era que roupas coloridas e extravagantes, algumas quase cegavam de tão “acesa” era a cor, verde limão, azul bebê e amarelo reluzente eram as mais vistas nos corredores do shopping Iguatemi, e lojas como “OP”, “Lightning Bolt”, “775”, “Hang Loose”, “Fico” e “Hang Ten” eram cobiçadas e viviam lotadas de adolescentes precisando marcar sua presença, as vezes tendo que esperar juntar várias “mesadas” para poder comprar o sonho de consumo.

Perto do prédio tinha uma loja multimarcas, que sempre visitávamos para conhecer as novidades e babar em camisetas vendidas a preço de ouro, e, quando gostávamos de algo, toca lá o período de poupança. Foi exatamente o que o Edu (japa Jaspion, ou Princesa Safiri da história anterior) fez, ele gamou em um moletom branco, com mangas e capuz vermelho sangue, da Lightning Bolt, lindo de morrer, e de morrer também era seu preço, o que fez o Edu juntar muito, e namorar muito essa peça, não tenho certeza mas garanto que demorou mais de 2 meses de economias no lanche da escola para ele finalmente bater na minha porta e dizer: “vamos lá na loja pegar meu moletom, estou com a grana na mão”.

Era uma tarde de um dia de semana, havíamos voltado da escola na parte da manhã e como todas as tardes, nos encontrávamos para fazer algo. Jogar bola, algum jogo, andar de bike ou simplesmente jogar conversa fora, mas esse dia foi especial, um sonho estava para ser realizado, acompanhei o amigo.

A cara de satisfação daquele garoto, ao colocar a sacola debaixo do braço como se estivesse carregando um troféu, certamente já imaginando o quanto iria “abafar” na próxima festinha de algum amigo do colégio. Deixei-o em seu apartamento e fui embora, não imaginava que tamanha alegria e ansiedade o faria usar, naquele mesmo dia, seu moletom novo, só para descer para a salinha e ficar conosco. Naquele dia resolvemos jantar no Mac, tinha uma loja a duas quadras, fomos buscar nossos lanches e voltamos para comer no prédio.

Segura a história...

Preciso aqui fazer uma segunda introdução.

Fui morar nesse prédio quando tinha oito para nove anos, até meus quinze ou dezesseis só tinha meninos na nossa faixa de idade, e eram muitos, mais de dez, estranho isso, mas as meninas não iam morar lá. Até que em um determinado dia vimos uma mudança chegando, como nós éramos os guardiões do prédio, lá fomos saber mais sobre os novos moradores. Bela surpresa, o senhor era um verdadeiro ”fornecedor de artigos finos para cavalheiros”, era quase um milagre, ele chegou com suas cinco filhas. Duas delas da nossa idade, e já foram rapidamente enturmadas na gang. Mas nada ali naquele prédio era totalmente ou simplesmente normal, a caçula das irmãs era mais moleque que muitos de nós juntos, nada sobre opção de gênero aqui, mas pela postura e atitude mesmo, era porreta de brava a bicha. Ficamos muito amigos de cara.

... Com os sacos do Mac abertos e devorados, vamos à fase dois da noite, bater papo e contar mentiras. Nessa salinha havia um jogo de sofá 3 lugares e duas poltronas bem grandes, apertando dava para toda a galera sentar-se ali, metade no assento e metade em cima do encosto. A cena se formou, Tô (assim será chamada essa menina muleque) sentada na ponta do sofá com o Edu bem acima dela, sentado no encosto.

Muleca como era, pegou um sachê de catchup que sobrara do lanche e começou a brincar com ele, 1 segundo depois o Edu avisou, “vai fazer merda hein Tô”, ela ignorou e continuou, 5 segundos depois novo aviso do japa, “se fizer merda vai se ver comigo”, nova ignorada. 10 segundos depois o sache explode na mão dela e o conteúdo vai como um foguete no meio do peito do japa, como lembram, vestido com seu moletom branco zero bala.

Imediatamente esse japa "virou no Jiraiya", pulou do sofá e começou a xingar a menina com toda sua fúria. Ela, que de flor só tinha os espinhos, levantou também e tentou se desculpar, tudo isso em fração de segundos, ele a empurrou e ela – que não levava para casa – deu um chute no japa, que só restou se defender, colocando o braço na frente, braço esse que ostentava um relógio de ponteiro, daqueles modelos grandes, bem de japa mesmo. O relógio parecia um rojão, soltando peças para tudo que é lado, ponteiros para um lado e molinhas para outro, em 5 segundos o japa perdeu um moletom e um relógio, acho que nesse instante ele percebeu que continuar ali só iria trazer mais prejuízo, tirou o capuz do Jaspion, pôs o da princesa e foi chorar na cama que é o lugar quente.

Ainda bem que essa moda não durou muito, primeiro porque era muito feio e estranho mesmo aquele monte de gente que parecia acesa no 220V, e depois porque a dor da perda do moletom passou rápido.

Mulher Rastejante


Não tenho a menor ideia se isso ainda acontece, mas nos anos 80 era comum as histórias dos fantasmas que perseguiam crianças e adolescentes – sim éramos muito mais ingênuos do que a geração atual – lembro-me de algumas bem populares, a “loira do banheiro” era um clássico e cada escola perpetuava a sua como se fosse a única e verdadeira, ainda tinha a “assassina do elevador” que aparecia em todos os prédios quando anoitecia, a “noiva de branco” virava e mexia também aparecia por aí, sem contar os clássicos fantasmas que apareciam em cenas de filmes – o menino morto em 3 solteirões e 1 bebê me fez perder horas avançando e pausando a fita VHS, e olha que essa tarefa não era das mais simples. Bem, deixando o imaginário popular à parte, nós lá do “prédio” tínhamos o nosso fantasma exclusivo, a “mulher rastejante”, uma senhora que resolveu pular da janela de um andar alto e acabou se estatelando no playground, uma tristeza, mas logo em seguida ela voltou para assombrar todos os moradores (na cabeça dos garotos) rastejando entre os andares pelas escadas e agarrando quem esperava os elevadores nos halls. Posso dizer que realmente ela era temida, tinha alguns porteiros que a noite não utilizavam as escadas de forma nenhuma...

Nessa época era comum fazermos a “brincadeira do copo”, uma idiotice que servia basicamente para nos cagarmos todo de medo de voltarmos para nossas casas – lembra da mulher rastejante -  e passarmos a noite sem dormir direito, não faz muito sentido pensando com o olhar de hoje, mas naquela idade era uma obrigação. Claro que todos tinham medo desses assuntos sobrenaturais quaisquer, mas sempre tem o mais cagão, e esse era um japa com banca de “Jaspion” que na verdade estava mais para “Princesa Safiri” (dá um google).

Aquela noite parecia ser só mais uma noite de brincadeiras e histórias macabras, mas, premeditamos um enfarto do japa. Não sei o porquê raios minha mammy tinha umas perucas, e muito menos porque ela tinha umas cabeças de manequim para guardar essas perucas, era horroroso e horripilante aquelas cabeças dentro do armário, mas iria servir perfeitamente para nossa obra prima.

A preparação tinha que ser perfeita, uma logística e just in time ajustados, enquanto alguns chamaram o japa para nossa “salinha” (salão de festas que usávamos para nos reunir diariamente) os outros foram montar o ambiente, nada mais que ir até o andar dele, colocar no final da escada o manequim cabeça com uma peruca loira, ainda desenhamos uns olhos e boca no manequim, recheamos o que seria a metade de um corpo com almofadas perfeitamente distribuídas pelos degraus em um perfeito efeito de movimento e cobrimos com um lençol branco, para completar a cena ainda acendemos uma vela bem na porta da casa dele e mais algumas ao lado do “corpo” – nada seria possível sem a conivência de seu irmão.

A noite deveria ser especial, teria que gerar muito medo, além dos usuais, e assim começamos com histórias de terror, na sequência entrou o copo e culminou com as lembranças dos aparecimentos da nossa querida rastejante. Algum tempo depois já era tarde e tínhamos que ir dormir, o japinha mais novo saiu um pouco antes com uma desculpa qualquer pois sua tarefa era de acender as velas. O clima estava desenhado, pena que as fotografias e filmagens à época eram tão raras e difíceis. Chegou a hora de subirmos, como ele morava no andar debaixo do meu, inventamos que outros dois amigos passariam em casa para pegar sei lá o que e pegamos todos o elevador.

 A primeira impressão não foi boa, achamos que nada tinha dado certo, pois assim que ele saiu do elevador já ouvimos ele gritar “ah como vocês são tontos”, ele não caiu, pensamos. Mas na verdade, essa foi a sequência:

Ele achou a vela acesa na sua porta, e isso não o assustou nem um pouco. Gritou para que ouvíssemos que isso não o assustou, e resolveu (lembra do Jaspion!!!) chutar a vela em demonstração de fortaleza, só que ao virar para chutar deu de cara com a rastejante sorrindo para ele. Ai que os gritos realmente começaram, que logo se misturaram com nossas risadas e um fio de urina marcando sua calça Fiorucci. Isso que é um bullying bem feito.

Nunca mais quisemos fazer a brincadeira do copo, mas a mulher rastejante continuou a assombrar os moradores daquele prédio por muito tempo.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Elk, nada maravilha - parte 2

Crescent City é uma cidade muito pequena, quase um vilarejo com pouco mais de 7 mil moradores. Foi justamente para o hospital(zinho) dessa cidade que fui levado pela ambulância que me resgatou no asfalto. Durante o trajeto fui ouvindo, pelo bombeiro que me acompanhou,  as histórias de acidentes com alces na região, oras se era tão frequente assim porque não colocam um luminoso gigante escrito, “um alce ainda vai te fuder aqui”... ainda tive que ouvir que eu teria sido o primeiro motociclista a ser atingido pelo animal naquele lugar, grande coisa né, não era assim que queria entrar para o Guinness Book.

Após muita dor e alguns exames de imagem, já tínhamos toda a noção do estrago, até que o médico diretor do hospital veio me explicar que eu não poderia ficar ali, pois eles não tinham estrutura para me tratar, e que me levariam para MedFord, Oregon (80 mil habitantes), juro que achei que fizeram isso para me “devolver” para o Estado onde eu havia caído (lá eles tem esse lance estadual muito mais forte que nós aqui), tipo: Oregon, segura essa pica que ela é sua....
A minha viagem tinha ido pela cucuia e o grupo se separou, eu fiquei com o Paulo, e com ele segui de ambulância em direção ao próximo hospital. Foram longas 3 horas de viagem, ele lá na frente conversando com a motorista em um papo super animado - ela era uma gatinha - e eu acompanhado por uma paramédica que mais parecia uma lutadora olímpica de judô, peso extra pesado, só para ter uma ideia essa “mocinha” me colocou e me tirou da ambulância “sozinha”, e olha que essa tarefa não é nada fácil...

Ao chegar no hospital de Medford fui levado a uma sala de procedimentos que mais parecia um centro cirúrgico, onde rapidamente fui rodeado de médicos e enfermeiras, sim, eu era notícia da cidade, todos queriam conhecer o otário que havia – de moto – atropelado um alce. Resolveram ali mesmo colocar o meu punho esquerdo no lugar, então tiraram as talas e foram futricar, a dor era imensa, e como os dois braços estavam imobilizados eles colocaram o soro e medicação via veia do pescoço, em resumo, eu estava na merda.

Comecei a gritar e xingar todos ali, meio atordoado pela dor misturada com medicação pesada, e quanto mais eu xingava mais todos riam, eu era o macaco do circo mesmo, até que depois soube que o que eu xingava em português o Paulo ia traduzindo para o inglês, teve troco.
Já estava amanhecendo quando me levaram para o quarto onde iria passar alguns dias, como o acidente havia sido perto do meio dia do dia anterior, estava esse tempo todo sem comer, e nada serviram, vai entender essa dieta médica americana. Mas antes de continuar nesse assunto, lembro que estava com os dois braços imobilizados e ainda quase sem conseguir me mexer pelas dor das costelas quebradas, então uma simples mijadinha precisava de ajuda, se é que me entendem, além disso eu tomo diariamente um remédio diurético por conta da minha retenção de líquidos, então essas mijadinhas são beeeeem frequentes. No quarto só tinha eu, lógico, e o Paulo, “ taí ” o troco.

No final do dia o Paulo e eu estávamos verdes de fome, e nada de chegar nenhuma bandeja, ele já tinha roubado (sim, roubado) umas bolachas e yogurte da geladeira das enfermeiras mas não ajudou muito e foi atrás de comida, me deixando lá sozinho e faminto. Aguentei né, ele achou a lanchonete, más com medo dos médicos não me trouxe nada. Dormi. Em jejum. Ao amanhecer e ainda sem nenhuma bandeja à vista eu não aguentei mais, chamei a enfermeira e perguntei porque desse jejum médico, ela, graciosa e calmamente abriu a gaveta da mesa da minha cabeceira, retirou um “livro” cardápio e me entregou, dizendo, você não tem restrição nenhuma, e aqui funciona assim, você liga quando quiser, quantas vezes quiser e pede o que quiser desse cardápio. Acho que foi o troco do troco do Paulo, tudo bem vai, justo. Comi um rinoceronte nesse almoço.

 Dois dias depois estava saindo do hospital, pois optei por não ser operado nos USA, se eu não sabia nem pedir comida lá imagina ser operado e ficar semanas lá. Mas tinha um problema que descobri depois que sai do hospital, com as costelas quebradas o meu seguro saúde não permitia que eu pegasse avião, mas antes de tudo isso eu precisava chegar em Los Angeles, então toca mais dois dias de carro (deixei a moto no primeiro hospital e agora alugamos uma minivan) até chegar lá. Eu saí com a roupa de hospital mesmo, sabe aquela de bunda de fora que te dão quando esta internado, pois bem, era isso e uma bermuda, assim cruzei o estado, era uma atração à parte, onde parávamos logo estávamos rodeados de gente perguntando o que tinha acontecido, e quando falávamos do alce então, só faltou sair no jornal (se é que não saiu). Pelo menos a dor ia melhorando a cada dia que passava, mas depois de 1 semana do acidente eu ainda estava preso lá sem permissão médica de voltar. Não aguentei, comprei uma passagem e fugi. Finalmente ia para casa, mas antes disso tinha uma longa viagem pela frente, a poltrona da classe executiva ajudou muito mas na escala no Panamá não aguentei e tive que ir ao banheiro (numero 1, o numero 2 conto em outra ocasião), no enorme aeroporto da cidade do panamá fui atrás de um banheiro, entrei na casinha de deficientes, bem maior e com mais recursos, consegui depois de certo esforço tirar a bermuda e me aliviar, só que quem conseguia colocar aquela bermuda de volta sem os dois braços... atravessei o aeroporto inteiro meio que agachado, de bunda de fora, até a sala de espera do meu voo, onde só aí consegui ajuda para me vestir, lá na frente de todos.

Nem acreditei quando cheguei em casa, ainda teria uma longa jornada de cirurgias e recuperação pela frente, sabia disso, mas sabia também que a segunda viagem de moto no exterior não poderia acabar assim. Imediatamente comecei a planejar a próxima, e um ano e meio depois estávamos embarcando para andar 5 mil kms pela Europa, mas aí é outra história.

Elk, nada maravilha . parte 1

O alce é o maior dos cervos, podendo atingir mais de 2 metros de altura ao nível das escápulas e pesar mais de 450kg ... Distingue-se dos restantes membros da família pelo tipo particular de galhadas: geralmente presentes apenas nos machos ... A longevidade do alce é, em média, de 20 anos.
Estes ruminantes têm pernas longas e pescoço curto, o que os impede de pastar das ervas rasteiras. Alimentam-se de rebentos e folhas de árvores e de plantas aquáticas, pelo que se encontram essencialmente em florestas ou na sua proximidade. O seu comportamento é geralmente tímido, mas os machos podem tornar-se violentos durante a época de acasalamento ... No entanto, o principal perigo que os alces representam para o ser humano é na estrada, onde podem provocar graves acidentes, sobretudo na primavera, quando aproveitam como compensação nutricional o sal lançado no pavimento de algumas estradas na América do Norte.

Após a frustração da primeira e até então única viagem de moto no exterior (conto anterior), passou a ser uma meta pessoal organizar “a viagem”, com detalhes de aventura em um nível superior. Em agosto comecei a traçar os planos e angariar amigos com o mesmo espírito, o trajeto já estava definido, cruzar os USA de norte a sul, do Canadá ao México, pela costa oeste do pacífico.

Após meses de organização, que foi muito além da rota, hotéis, estradas, em até apoiar alguns amigos que nunca haviam sequer saído do Brasil e nem passaporte tinham. Tudo pela viagem dos sonhos. A data, maio, afinal culminaria com o meu aniversário, dia 07 (por sinal a exatos 7 anos, sim, estamos em maio).

A partida se deu em final de abril, e lá fomos nós em direção a Seattle. O inverno já tinha acabado, mas não tinha levado todo o frio embora, eita primavera fria que tem aquele lado do mundo. A cidade de Seattle é encantadora, apesar de chover mais de 300 dias do ano isso não chega a incomodar, todos andam nas ruas como se nada estivesse acontecendo. Após 2 dias de visita na cidade chegou o dia de pegarmos as motos e iniciar a jornada.

Como o planejado, seguimos rumo ao sul utilizando somente as estradas vicinais, afinal não tem emoção nenhuma andar em auto estradas. Primeira parada, Astoria, cidade muito linda e cenário da série Os Goonies, além do dia passando por paisagens maravilhosas e totalmente diferentes do nosso costume, parando para ver baleias costeando a praia, passando por cidadelas bem estilo “redneck”, tendo todas as casas as bandeiras americanas penduradas nas suas entradas e muita tranqueira nos terrenos (como americano é consumista).

Segundo dia seguimos para Gold Beach, já no estado de Oregon, cidadela minúscula à beira do pacífico, onde o estranho era a quantidade de placas de perigo de tsunami. Nessa cidade não conseguimos nem achar um local para jantarmos, a saída foi apelar ao mercado e fazer um ragatanga no quarto mesmo, uma pena pois à meia noite já seria dia 7 de maio, meu niver. Comemos e bebemos no quarto mesmo, todos reunidos, todos felizes e preparando os planos para a próxima noite, onde comemoraríamos a data em São Francisco.

Acordamos para o grande dia, estava ansioso por cruzar a Golden Gate, seguimos.
Confesso que durante todo esse primeiro trajeto, víamos ao longo da estrada muitas placas amarelas com o dizer “elk”, nada mais, lembrem-se de que estávamos em estradas vicinais, pequenas, na maioria das vezes cercada por mata densa. De tanto ler até que deu uma certa curiosidade mas todos não passaram disso, até que.....

Estava com o piloto automático da moto ligado, marcando exatas 60 milhas por hora (só 96 km/h) quando, ao final de uma curva, surge uma porra de um alce filho de uma puta, e resolve atravessar a estrada como se estivesse andando no shopping. A última imagem que lembro é de ver o bicho entrando na estrada e depois do apagão me lembro de me arrastar pela estrada com a “cara” no chão (sugiro nunca andarem de capacete sem queixeira). Resultado, punho esquerdo quebrado, braço direito quebrado e ainda duas costelas quebradas do lado direito. Não sei se foi esse o meu presente de aniversário ou se foi que em menos de 30 segundos que caí, parou uma camionete com um casal de velhinhos, eles eram de alguma associação da comunidade local, tanto que tinham um rádio da polícia e alguns cones na caçamba, em impressionantes 15 minutos já estava sendo atendido por policiais, bombeiros e ambulância. Fui levado ao hospital da cidade mais próxima, já na Califórnia, Crescent City.

Se eu havia planejado uma viagem de aventura, a verdadeira tinha acabado de começar. Andar de moto pelas estradinhas era fichinha perto do que viria daqui para frente... continua ...

Livro Impresso

Quem quiser essas histórias em um livro impresso pode me chamar que envio


Sozinho e mal acompanhado


Quantas vezes nos sentimos sozinhos mesmo rodeados de pessoas? Acho que tantas quantas nos sentimos totalmente preenchidos quando estamos em plena solidão. Particularmente prefiro a companhia de pessoas, sou daqueles que funciona a base de gente, quando sozinho minha máquina começa a parar. Engraçado é eu estar contando isso justamente numa época em que estou morando sozinho, tendo que encontrar em duas amigas caninas todo o conforto que me tira da completa solidão noturna. E falando em estar sozinho...
Era para ser uma viagem daquelas, não tinha o que dar errado, local sensacional - rota 66 nos Estados Unidos - pessoas legais e ainda andando de moto pela primeira vez fora do Brasil. Primeira parada, Los Angeles. Era meio da tarde quando desembarcamos e fomos para nosso hotel muito bem localizado em plena Hollywood Blv, ao lado do Teatro Chinês. Assim que fizemos check-in já saímos para explorar toda a região, a pé mesmo, curtindo toda aquela atmosfera que só LA (sem trocadilhos) pode oferecer.
Acordamos no dia seguinte ainda extasiados por tudo aquilo, o roteiro do dia seria conhecer Santa Monica e seus arredores, fomos. Logo na saída do estacionamento encontramos uma loja de locação de bikes, onde logo veio a ideia de alugar para conhecer melhor a orla. Como eu tenho uma sequela de um acidente que sofri anos atrás, fiquei com receio de alugar sem antes tentar pedalar (nunca mais havia feito isso), então fiz a proposta para o líder da viagem:
- Vamos fazer o seguinte, você aluga sua bike enquanto eu te espero no pier, aí chegando lá eu dou uma volta e vejo se consigo ainda pedalar normalmente, se conseguir eu corro até a loja e alugo uma para mim?
Trato Feito (sem trocadilhos 2)
Larguei eles na loja e me postei no banco da praça, conforme combinado. Alguns minutos depois lá vem a gang ciclista, param na minha frente e o líder solta:
- Vamos só até o final do pier e já voltamos ok, aí você testa se consegue andar, beleza?
Claro que concordei, eu sei quando estou inconveniente e isso era o mínimo que podia fazer por atrasá-los em seu passeio, sentei novamente, lá foram eles até o pequena jornada inicial.
"Quanto tempo será que leva para ir até o final do Pier e voltar? pensei eu, assim que se passaram os primeiros 15 minutos. Esperei."
"Acho que vou andando até o final do Pier para encontrar com eles, devem estar parando de loja em loja, aí já pego uma bike e faço o teste, pensei eu, assim que se passaram os primeiros 30 minutos. Fui."
Para minha surpresa e espanto, nada de bikers, nada de bikes e já estava achando que, nada de "amigos" também. Fui e voltei naquele Pier mais duas vezes, andei ao redor, sempre preocupado em voltar ao banco que era nosso ponto de encontro. Lá pelas duas da tarde, algo perto de duas horas da última vez que os tinha visto, resolvi andar por conta, fui almoçar, fui no shopping, mas, sempre retornando ao banco da praça com uma pitada de esperança de ainda encontra-los. Entre essas idas e vindas eu regularmente passava também pelo estacionamento, sempre vendo que a nossa van ainda estava estacionada, essa imagem me dava um certo alívio até porque - não mencionei antes - era minha primeira vez em Los Angeles, não conhecia ninguém lá, e não tinha ideia do nome do hotel ou tampouco seu endereço, a contar também que meu inglês macarrônico compete com os dos recém-chegados taxistas ucranianos.
Confesso que a decepção aliada a raiva crescente tomava conta de mim, tentava achar respostas e motivos sem cansar, mas nada me vinha à cabeça. Sentimento esse que cresceu exponencialmente quando, na última passada pelo estacionamento, só encontrei uma vaga, sem van. definitivamente tinham me deixado para trás. Motivo, desconhecido.
Resolvi relaxar em um bar que encontrei no terraço do shopping e que servia um bom vinho e oferecia uma bela vista do mar e seu pôr do sol. Sozinho aportei por lá e fiquei tentando pensar o que fazer. Meu problema já não era só aquele, não bastava eu conseguir voltar para o hotel, mas como seria nosso relacionamento dali pra frente, lembrando que esse era só o primeiro dia da viagem.
Quando anoiteceu, a beleza do pôr do sol já não fazia companhia, o vinho já se mostrava presente junto com o frio do final do inverno, era hora de ir. andei até um ponto de taxi que havia cruzado nas andanças e entrei em um.
Um aparte, como é estranho você sentar no banco de trás do carro e ter uma blindagem entre você e o motorista, tem que falar por buracos e pagar através de um escaninho.
Bem, pedi para ir até o tal teatro chinês, aquilo era minha única referência que tinha, ainda tentava caçar sinal "free wi-fi" durante a viagem para ir atualizando o GPS do celular, para ver se estava indo no caminho certo ou se iria virar estatística de mais um maluco gringo. Quando comecei a ver lugares conhecidos foi um alívio, vira aqui, vira ali, cheguei no hotel, sorte que meu senso de direção estava afiado.
Na recepção me informaram que ninguém do meu grupo havia chegado ainda, no quarto vazio tomei banho, me troquei e já estava pronto para continuar minha jornada solitária pela cidade quando eles chegaram, todos alegres e sorridentes, afinal passaram um dia maravilhoso, soube que após o passeio de bike ainda pegaram o carro e foram na Rodeo Drive, Beverly Hills, entre outras coisas. Imediatamente meu sangue subiu ao ver aquele povo festejando e parti para cima do amigão que havia feito o trato comigo, aos berros iniciei meu dicionário de xingamentos, ele ainda tentou retrucar, mas a razão estava toda comigo, fiquei ali sabendo que o resto do grupo não sabia de nada, ele havia dito que eu não queria fazer o passeio com eles.
No dia seguinte começou a viagem de moto, verdade que isso me alegrou um pouco mas estava bem chateado com todos ali do grupo, até porque esse vaso quebrado não dava mais cola, como não deu. O "amigão" eu vi pela última vez no desembarque no aeroporto em SP. Mas uma coisa aconteceu de positivo nisso tudo, nasceu ali a vontade de organizar viagens de moto com amigos de verdade. Assim que voltei já comecei a planejar a próxima trip, toda essa confusão fez nascer os “Brazucas” e a “Uritur”, obrigado "amigão".

Copa do Mundo

Em Guadalajara tudo pronto para nossa estreia frente à Espanha, bem que este jogo poderia estar acontecendo no Morumbi ou Maracanã, se não fosse a recusa, pelo presidente Sarney, do convite feito pela Fifa ao Brasil para sediar esta Copa, então, viva el México.

Primeiro de Junho de 1986, os times entram em campo e a gritaria se generaliza na Avenida Paulista, sede do maior telão instalado na cidade, em frente ao prédio da Gazeta a multidão se aglomera para assistir mais um show brazuca, e como não poderia ser diferente, lá estava eu. Logo o primeiro ato mostrou que aquele dia seria confuso, após a formação tradicional o DJ mexicano tocou o nosso Hino à Bandeira ao invés do Hino Nacional, nós, calados, ouvimos e reclamamos, afinal quem sabe a letra desse hino.

Meio dia o jogo começou, sem muita empolgação o que restava era falar mal do time e tomar umas “brejas”, acompanhado de um amigo, em instantes trocávamos comentários e críticas com os torcedores ao lado. Dezessete minutos do primeiro tempo, um dos jogadores mais bonitos do elenco marcou o gol brasileiro, Sócrates abrira o placar, Telê Santana deu dois pulinhos, e foi isso. Com o fim do jogo e a vitória magra do selecionado, fomos comemorar, a verdade é que já estava a poucas gotas de uma bebedeira enorme, mas não recusei, juntamos alguns mal-acabados e nos instalamos em um bar qualquer da avenida.

Meia hora de conversa sobre o jogo e o assunto virou para “mulher”, afinal, amigos numa mesa de bar, cerveja, futebol e mulher são os assuntos do cardápio. Meu amigo levantou-se, momentos depois retornou com a notícia, havia combinado de nos encontrarmos com duas amigas, no final da tarde, em um bar de Pinheiros, ali ficamos até o horário do encontro.
A Praça Benedito Calixto é o palco de uma feira de antiguidades e inutilidades, todo domingo as barracas são montadas e são ofertados ao público, gêneros dos mais diversos preços, idades e gostos, aliás, bem duvidosos. Seria em um bar situado nessa praça, o “Bar Bar O”, o local por si já era psicodélico, um galpão em dois andares, térreo e subsolo, em cima as mesas, dezenas delas, do bar estilo americano saiam as mais variadas e estranhas iguarias, acompanhadas de muita cerveja e pinga. O andar de baixo servia de local de guarda de fantasias e carros alegóricos, amontoados, tomavam conta de quase todo o espaço, o que sobrava, abrigava os malucos do pedaço. Algumas alegorias serviam de decoração no galpão principal, bem acima de nós, uma águia imensa balançava, pendura no teto por fios.
Sentamos e esperamos as companhias, já não tinha ideia do que falar para as meninas, nem meu nome sabia mais, enfim, o Brasil ganhou, viva. As meninas chegaram, me apresentei e me encantei, eram mais bonitas que o Sócrates, tá valendo. Começamos a conversar, na verdade mais ouvia que falava, até que tudo começou a girar, a águia já não estava mais presa ao teto e sim voando pelos ares do galpão, mal conseguia fixar os olhos nos três. Cinza, preto, desmaiei.
Quando abri os olhos me deu vontade de fechar novamente, a cena era estranha, eu deitado no chão, todo molhado por ter carregado comigo algumas mesas e tudo que nelas continha, uma roda de pessoas me cercavam e ao meu lado direito um garçom com um copo de água com açúcar, ao meu lado esquerdo uma das meninas com um copo de água com sal, ambos implorando para que eu bebesse e discutindo entre eles qual seria o elixir da cura. Aos poucos fui recobrando a consciência e percebendo o vexame, queria sim um copo cheio do pó de sumiço ou da invisibilidade, levantei, refizeram as mesas nos devidos locais, contudo todos os olhares estavam voltados para mim, até a águia me olhava com um certo sorriso nojento. Na verdade, já estava bem, parece que os poucos segundos foram suficientes para o corpo eliminar todo o álcool absorvido durante o dia, a cabeça não doía mais, teria total condição de um recomeço, mas a vergonha era grande, fingi que ainda estava horrível e pedimos a conta.
Perdi as amigas, de novo um encontro às escuras fora amaldiçoado, tudo bem, nada era pior do que estava por vir, o Zico, o Sócrates e o Júlio César perderam pênaltis no mesmo jogo e fomos eliminados pela França, quer mais, a Argentina foi campeã. Nunca mais fui à Paulista.

A Aposta


Sempre fui competitivo, odeio perder, até o ponto de perder a compostura. Nunca fugi de uma disputa, de um jogo ou de uma boa aposta, claro que essa postura trouxe problemas, tanto nas vitórias quanto nas derrotas. Preciso melhorar, sei, mas a temperatura sobe a cada novo desafio.
Preparava-me para sair quando o interfone toca e anuncia os amigos esperando na portaria do prédio, acelerei a beca e desci. Saudações e conversas sobre a rota da noite até que surge o assunto sobre gosto etílico, nesta época estava enfeitiçado por um bom conhaque, enquanto um dos amigos preferia uma cachaça mineira, o assunto esquentou e a disputa logo foi lançada;
- Aposto que bebo mais pinga do que você conhaque...
As palavras desafiadoras remoeram a espinha, que sentiu o tradicional efeito congelante produzido pela adrenalina, desafio aceito. A primeira parada estava definida, a padaria da esquina. Os copos americanos foram depositados no balcão de aço inox, que abrigava as redomas de vidro recheadas de salgados de aparência tentadora e origem duvidosa. Ambos “pela boca” das bebidas selecionadas, pinga para ele, conhaque para mim, as marcas estavam distantes das reconhecidas pelas pesquisas de opinião e a ressaca era anunciada. Viramos.
- Outra rodada
Assim se fez, prontamente o atendente apresentou mais dois americanos, já cheios. Confesso que para mim já bastava. Viramos.
Após a quarta dose aumentara a surpresa com a feição do outro competidor, que parecia imune à situação, enquanto que eu procurava o centro da banqueta redonda que circundava todo o balcão. Precisei sentar e buscar apoio.
- Outra rodada
Estava entorpecido, não lembrava o porquê ali estava, tampouco onde iria e quiçá quem era. A quinta e sexta rodadas foram mais fáceis, a língua já não reconhecia sabores e a garganta formigada aceitava ser a rodovia expressa do líquido marrom dourado.
Na sétima rodada venci.
Ao dar o primeiro gole o competidor golfou, espalhando o aroma da cana num raio de meio metro, bastava eu dar um pequeno gole e levar o troféu para casa. O sentimento de vitória foi se desmanchando quando a discussão se acalorou entre o competidor e o dono da padaria – um português de avental branco sujo e lápis afiado na orelha.
- Oras, oras, assim você vai matar o gajo.
A surpresa ajudou a diminuir a tontura, soube que antes do interfone tocar, o “amigo” fora até a padaria e combinara a aposta com o atendente, que por uma singela gorjeta aceitou servir o seu melhor conhaque para mim e um copo de refrescante água pura para ele. O sétimo copo foi servido pelo portuga, que vendo a cena em seu camarote feito por um caixote de bebida deitado, posicionado atrás do caixa, veio ao balcão e serviu a mais bela cachaça ao distinto e honesto cavalheiro.
Aprendi uma bela lição, nas próximas apostas quem determina as regras sou eu.

Páscoa na Praia . parte final


Chovia aos cântaros quando finalmente encontramos as três casas geminadas recém construídas, as ruas do novo bairro eram de terra e distantes do centro comercial e divertido da cidade, a praia mais próxima estava a cinco ou seis quadras, o tempo não ajudava, naquelas condições aproveitaríamos apenas o cheiro da maresia. Uma de esquina, outra no meio, a terceira era vizinha de um terreno ainda desocupado, que servira de depósito de objetos dos mais variados. Pequenas, todas tinham a mesma disposição, uma sala na entrada, dois quartos do lado direito eram divididos pelo banheiro e, à esquerda, a cozinha e um quintal com tanque e varal. Apesar de construção nova a mobília certamente veio de algum brechó ou da casa de algum parente morto. O que separava os fundos, entre uma casa e outra, era um baixo muro, onde com uma esticada de corpo era possível ver as intimidades do vizinho, quando houvesse.
Sentimos falta do conforto de nossas casas e, principalmente, de nossos carros, a geografia do local somada ao mau tempo indicava que nosso feriado estaria fadado à reclusão. Escolhemos ficar na casa do meio e fomos todos arrumando nossas camas no quarto dos fundos, ficaríamos juntos, as conversas eram a diversão disponível. Abrimos o que restou do assalto às geladeiras, com dificuldade ligamos o fogão e achamos panelas razoáveis, ceiamos e fomos deitar, a noite anterior havia roubado grande parte de nossas forças e teríamos ainda três dias de feriado pela frente.
Era noite, estávamos deitados praticando o exercício da fala e da risada, no quarto dos fundos não havia janela, uma porta balcão de treliça de madeira dava acesso ao quintal, fechada, continha a invasão de pernilongos, borrachudos ou muriçocas, nesta condição entravam às dezenas e não aos milhares. O calor insuportável era parcialmente banido pela ação de um ventilador dos primórdios de sua invenção, a cada rodada lateral despejava uma pequena golfada de ar quente, entre risadas e caça aos voadores, nos abanávamos. No meio da aventura ouvimos um barulho vindo da casa ao lado, a de esquina, nos silenciamos por instantes, a imaginação fértil própria da adolescência aflorou e começamos a regurgitar ideias, ninguém se aventuraria numa espiada. Não precisamos, o motivo do barulho veio até nós, um facho de luz logo após uma pancada seca, própria de um salto, iluminou a porta balcão, fazendo que uma luminosidade adentrasse o quarto, o silencio era percebido pela possibilidade em ouvir os corações saltando, outro barulho seco e a luz se fora. Estava claro que não estávamos sós, e que apesar do proprietário não saber, lá havia inquilinos, nos certificamos sobre portas e janelas trancadas e escoradas com móveis e utensílios barulhentos e fomos dormir, era a única coisa a fazer, demorou, mas conseguimos.
Muito cedo, muito calor, os lençóis molhados foram o despertador perfeito para o início do dia, ao abrirmos a porta, chuva, como sempre torrencial. Os potes trazidos de casa já estavam vazios e a fome era grande, por horas escolhemos compartilhar esse mal-estar a sair pela rua barrenta.
Havia passado do horário do almoço quando decidimos procurar alguma padaria por perto, quatro quadras depois achamos uma venda, pães, bolos, salgados e um litro de leite para cada, voltamos felizes e ansiosos com a fartura. O leite ainda era do tempo do saquinho, que após aberto, deve ser condicionado em outro local, onde? Um pegou uma panela, outro um jarro, eu terminei o pouco conteúdo que restara numa garrafa de refrigerante de limão. Preparamos um lanche e sentamos à mesa quadrada, com quatro lugares. No primeiro gole senti certo gosto azedo no leite, mas fiquei quieto, o recipiente certamente influenciara o sabor deixando rastros de seu conteúdo anterior, fiquei quieto para não ser alvo de risadas, logo veio à surpresa, todos os quatro litros estavam azedos, não era culpa dos recipientes, mas da má guarda em seu local de venda. Tomamos os quatro litros.
A noite chegara e as portas e janelas estavam devidamente trancadas e escoradas, fomos para o quarto, as conversam da noite anterior deu lugar a ansiedade pela visita anunciada, não precisamos esperar muito e os barulhos voltaram, o salto, a luz, dessa vez acompanhado de pausa, o vizinho estava em nosso quintal e não havia se utilizado dele como passagem, ali ele parara, certamente ele acompanhou a movimentação diurna da casa e teve a certeza de que havia apenas três pirralhos na moradia, bateu na porta balcão e nos chamou. Silêncio, nova batida acompanhada de uma frase mal construída. – Abre aí mano, sou do bem, ou algo semelhante, atravessou as frestas, fizemos uma rápida conferência, facas estrategicamente escondidas em local de fácil uso, abrimos.
Um rapaz de vinte e poucos anos ficou ali parado, desligou sua lanterna prateada e estendeu a mão em sentido de comprimento, fomos recíprocos. Sem entrar ele contou brevemente sua história, dormia ali desde a fase da construção, era bandido sim, roubava turistas, seus carros e o que mais pudesse carregar e revender nas “bocas”, fazendo assim alguns trocados e levando a vida, nos reconfortou dizendo que nada de mal queria para nós, claro que a condição seria o aceite e o silêncio sobre ele. Aceitamos. Ele se foi do mesmo modo que chegara, pulando o baixo muro lateral. Fomos dormir já com as malas prontas, chega de tanta tortura.
A surpresa foi grande quando abri a porta de casa, normalmente voltava depois da data programada, muitas vezes perdendo dias de aula e compromissos, mamy perguntou se estava tudo bem, respondi que o tempo nos fez mudar de ideia, sem mais delongas. Quando fomos devolver as chaves da casa tínhamos firmado um pacto, nada falaríamos sobre o meliante, ele nos pareceu mais legal do que o primo furão.

Páscoa na Praia . parte 1

Apesar de me utilizar do carro com frequência, não viajava, faltavam dois anos para a carta de alforria ser liberada pelo Detran, a dependência dos amigos era total quando se tratava de pegar a estrada. Dois amigos estavam na mesma situação, fomos à caça de companhia e transporte, achamos um primo de um deles que aceitou o convite para o feriado prolongado de Páscoa. Acertamos na mosca, além de permissão para dirigir, ele ainda tinha local para ficar, seu pai acabara de construir 3 casas geminadas em Caraguá e todas estariam vazias. Destino, praia.
Pais avisados, mochilas nas costas, alguns “tapeware” de feijão, arroz e mais algumas guloseimas retiradas das geladeiras do trio, era só aguardar nosso anfitrião. Grande atraso, grande surpresa, eis que surge o dito girando o molho de chaves das casas e informando que não iria mais, para compensar nos daria uma carona até a rodoviária, grande merda, fomos.
A placa no guichê da cia de ônibus anunciava a quem quisesse ver que os lugares para a praia se esgotaram, rodamos várias empresas na tentativa de desistências, até que desistimos. A melhor opção ofertada veio de um vendedor de bilhetes que nos indicou a viagem até São José dos Campos e, de lá, pegar outro até Caraguatatuba, afirmando que para esse segundo trecho a frequência de carros era grande. Não tinha remédio, remediado estava, vamos à SJC. Na descida da plataforma a pressa fez com que uma das mochilas rolasse escada abaixo, os grãos de feijão saltitavam pelos degraus parecendo que já haviam chegado ao seu destino, o odor nos acompanhou ainda por longo tempo.
Trecho tranquilo, a noite estava quente e iluminada, chegamos em SJC por volta da virada do dia, saltamos do ônibus e corremos ao guichê que anunciava venda de passagens para a praia. Só no dia seguinte, à noite não sai carro não. Essa informação caiu como um balde de água gelada, balde, balde, falaremos disso mais tarde.
A rodoviária era pequena e toda aberta, mais parecia uma praça com estacionamento para ônibus e algumas poucas construções para venda de bilhetes, a lanchonete ficava fechada por uma grade de ferro e ofertava aos olhos seus quitutes, tortura. Alguns poucos bancos de cimento ou plástico eram disponíveis aos usuários, procuramos o mais estratégico e aprontamos nossa “cama”, nessa altura a chuva cortava os raios de luz amarelada emitidos pelos postes da rua.
- Hei, hei, hei, não pode deitar aí não. Apareceu um vigilante ao longe, vinha gritando e marcando sua passada com a batida do cassetete na botina nunca lustrada. Tentamos negociar, explicar a situação, mostrar que não éramos indigentes e que estávamos ali por uma fatalidade, não adiantou. Pode ficar sentado, deitar não pode. Juro que ainda terei a oportunidade de perguntar a alguma “otoridade” o motivo desta “lei”. Sentamos, e assim ficamos.
O ronco parecia anunciar um bombardeio aéreo, infelizmente era o prenúncio de uma belíssima dor de barriga, a primeira ida ao banheiro parecia uma corrida de 100 mts com obstáculos, entrei no guinness. O banheiro acompanhava a arquitetura e tamanho do resto, duas portas destinadas ao reservado, em cada, espaço insuficiente até para ser acompanhado por uma leitura. O papel fora inspirado na mais bela urtiga, de cor rosada, aparência e toque áspero, imaginei quantas vezes ainda teria que me utilizar deste instrumento de tortura.
Poucas visitas se passaram e não conseguia mais olhar para o papel, precisava pensar em alguma solução, fui passear pela redondeza e estudar opções. O sorriso não pode ser contido quando avistei um kit de limpeza; rodo, desprezei; vassoura, desprezei; panos sujos e molhados, desprezei; o balde, ah, o balde, passou a ser meu companheiro, não havia local que não me acompanhasse, aquele utensílio ganhou nome e sobrenome, estava salvo, o desconforto da indisposição ainda persistia, forçou umas várias visitas ao cubículo e agora disputava com o sono e cansaço, estes motivados pela hora avançada e por não poder deitar nem tampouco “sentar”.
O sol logo ofuscou as luzes artificiais e o movimento foi aumentando paulatinamente, as cabines se abriram, a lanchonete permitiu que saboreássemos os tão cobiçados quitutes e os primeiros “carros” se abrigaram nas plataformas, corremos ao balcão, queríamos sair dali.
- Caiu barreira, a previsão de saída será para depois do almoço. Mais uma notícia ruim perturbou a digestão do desjejum, negociamos com o motorista sobre a possibilidade de aguardarmos a saída dentro do ônibus, permissão dada, nos aconchegamos nos bancos macios e reclináveis, eu e meu balde ocupamos duas poltronas, dormimos. Acordamos com o chacoalhar dos amortecedores trabalhando para fazer as curvas da serra, era final da tarde quando apontamos na cidade e recebemos a saudação das ondas. Chegamos. Claro que o feriado e seus “agouros” estavam apenas começando, mas isso fica para a continuação...

Gol 1982 azul calcinha

Com dezesseis anos tinha um carro à disposição, era um gol com uns 4 anos de vida, azul claro, motor refrigerado a ar, uma verdadeira carroça pela concepção do presidente Collor. Não entendam como uma reclamação, o possante me acompanhava - às vezes carregava - a todas as baladas da época. Era um herói, já havia sofrido muito na mão deste amador, um dos seus para-lamas era pintado em um azul mais claro ainda, depois de uma batida nunca acertaram a cor exata, ficou.
Certo sábado à noite convidei uma amiga de colégio para uma volta, antes disso, conversei com os amigos do prédio e combinei que voltaria a tempo de terminarmos a noite em alguma balada, horários marcados com ambos, saí a busca da garota. Por volta das nove estava na frente do prédio dela, assim que entrou começamos a longa decisão de onde ir, acabamos aportando no “Speak Easy”, um boteco legal nos jardins, que tinha como principais atrativos uma mesa de sinuca e uma pista de dardos, sentamos e conversamos. O papo estava gostoso, contudo os ponteiros se adiantavam rapidamente e apontavam para o horário do segundo encontro, dei a velha e boa desculpa de cansaço e fomos em direção à sua casa. Estávamos na Alameda Santos, paralela à Paulista na região dos Jardins, quando surgiu o assunto sobre preferência nos cruzamentos, logo dei uma de entendido e me pus a dissertar sobre o assunto. Em um cruzamento simples, quem vem da direita tem a preferência de passagem, salvo cruzamentos com farol ou com placas de sinalização específica. Passamos pelo primeiro cruzamento, estávamos à direita, passei direto. Segundo cruzamento, esquerda, parei. Outro à esquerda, parei novamente, e mostrava o comportamento dos outros veículos. Chegara mais um onde estaria à direita, acelerei, olhei para o lado do passageiro, reforcei a regra e BUM.
Um opala sinistro, conduzido por quatro indivíduos igualmente sinistros e analfabetos em legislação de trânsito, passou a toda pelo dito cruzamento. O impacto foi tamanho que jogou meu pobre Golzinho em cima da calçada, fazendo abalroar um Santana que ali estava estacionado e ainda derrubar um poste de sinalização. Olhei para o lado e percebi que, apesar da força da batida e da não obrigatoriedade de usar cintos de segurança, minha companheira nada havia sofrido. Desci pulando pela janela, saltando por cima do Santana e chegando à rua, fui ao encontro dos ocupantes do opalão, eles ainda estavam atordoados, um pouco pela batida e muito pela condição alcoólica antes da batida. Logo o dono do Santana, que bebia nos bares da esquina, chegou e, desolado, via seu carro em cima da calçada, semidestruído. Chamei todos num canto e comecei o discurso. A culpa teria que ser minha, pois eu não tinha carta, contudo se isso aparecesse nos laudos policiais, eu não iria pagar ninguém, então eu chamaria mamy, que assumiria a direção e culpa, aí acionaríamos o seguro e tudo certo. Acordo feito, fui ao orelhão.
Devia ser uma hora da manhã passada quando o telefone de casa toca, mamy atende desorientada, contudo na certeza de maus agouros, prontamente foi ao encontro do pupilo. Pegou um taxi e em poucos minutos estava chegou ao fatídico cruzamento, como a pressa fora imensa, até porque ela teria que chegar antes da polícia, ela apareceu de penhoar e “bob” no cabelo, uma formosidade. Meus amigos que já me esperavam no prédio, viram-na saindo apressada, logo deduziram que alguma tragédia acontecera e correram através do provável caminho que eu teria feito, chegaram minutos após a mamy. A polícia foi a última, como de praxe.
Com o fuzuê armado, os guardas tentavam entender o porquê da minha mãe querer insistentemente assumir a culpa, sendo que ela estava na preferencial quando o opalão cruzou – viu, eu estava certo – mas não teve jeito, mamy dizia que ela se distraíra e que a culpa era dela, assim foi. Chamamos um taxi para levar a amiga para casa e o guincho para tirar a sucata dali. Os guinchos de antigamente não eram as plataformas modernas que temos hoje, eles simplesmente engatavam a frente do carro e, a 45 graus, o puxava. O guincheiro informou que alguém teria que ir dentro do carro rebocado, também praxe da época, me prontifiquei, mas fui negado, teria que ser alguém com carta de habilitação, mamy era a segunda da fila.
Já era manhã de domingo quando o guincho entrou pela Paulista, puxando o carro semidestruído e com mamy ao volante, o traje – penhoar e bob – ficava mais chamativo à luz do dia, eu e meus amigos fazíamos questão de, a cada semáforo, parar ao lado e gritar, “vai dona Maria, vai pro tanque”, não era difícil encontrar outros transeuntes pegando carona na zoeira. Carro na oficina, chegamos em casa, ao fechar a porta já imaginava o discurso, mas não esperava tamanha intensidade. Do carro, não disse uma palavra, agora falou durante meses da vergonha que passou tendo que andar de guincho, ainda mais vestida daquela forma.

Proibido para menores de dez anos

Nunca entendi a proibição para menores de dez anos, oras, ou pode criança, ou não. O que muda no comportamento entre os oito e onze anos, no meu ponto de vista, nada, como diz um velho amigo, é a idade do armário, tranca com cinco e solta com quinze. Lembro que fui assistir “Tubarão” e “King Kong”, com medo de ser pego pelo lanterninha ou pelo bilheteiro, pois era somente para MAIORES de DEZ anos, chatice.
Estava com sete anos e meus primos de Bauru vieram me visitar, era dois, o mais novo com dois anos a mais que eu, o mais velho “já” com a maioridade primária, doze. Sábado à tarde fomos passear no Ibirapuera e almoçar sei lá onde, voltamos já anoitecendo, quando mamy fez a proposta indecente, ela iria com o mais velho ao teatro e depois buscaria os restantes para a janta, resmunguei um absurdo, mas de nada adiantou, seria impossível ir de encontro com o destino, a preferência de mamy pelo sobrinho querido e primogênito era clara e escancarada (digna de história própria, a ser contata em breve). Restara-nos, a mim e seu irmão, acatar tal decisão e nos renegar à espera. Aprontaram-se e na saída mamy foi enfática: estejam prontos tal hora, que passarei para buscá-los, ordens dadas, saíram para a diversão.
Olhamos um para o outro, na TV nada que prendesse a atenção, resolvemos brincar. Carrinhos de ferro espalhados pelo chão, durou pouco tempo, a monotonia era catalisada pela raiva de termos sido deixados de lado. Na dispensa tinha um volante de carro, sei lá porque aquilo estava lá, sempre esteve, boa pergunta, enfim lembrei dele e resolvemos brincar de motorista versus milionário, onde a cada período as posições se trocavam e quem servia passava a ser servido. O itinerário era sempre o mesmo, sofá arrumado em formato de limusine, motorista “abria” a porta e levava o milionário, que sempre estava acompanhado de uma belíssima mulher, ao restaurante chique. Volante preso a um cabo de vassoura e “vrum”. Chegando ao restaurante - por passe de mágica - o motorista virava garçom e servia guloseimas retiradas da geladeira e dispensa. Primeira rodada, o guaraná servido em copo de uísque, o pote de amendoim e balas. Segunda rodada, já sem guaraná, fizemos uma jarra de suco de uva, daqueles de saquinho em pó. Terceira rodada, acabara o suco, mas tinha uma garrafa recém-aberta de vinho do porto, o famoso Ramos Pinto, resolvemos utilizá-lo, sem sombra de dúvidas chegamos mais perto da realidade. Quarta rodada. Quinta rodada. Sexta rodada. Sétima rodada. Oitava rodada. Na verdade, a garrafa acabou na quarta rodada, mas da forma que o mundo girava...
O espanto foi nítido quando mamy abre a porta e depara com o filho e sobrinho “desmaiados” no sofá da sala, rindo de tudo e de todos, no banheiro, vestígios claros de todas as idas virtuais aos “melhores restaurantes da cidade”. Fomos levados direto para debaixo do chuveiro, de roupa e tudo a água gelada escorria pelo corpo e congelada a alma, a risada deu lugar rapidamente a uma dor de cabeça insuportável, o gosto na boca relembrava a todo instante a burrice que praticamos, além de todos esses efeitos colaterais, ainda tivemos que ficar ouvindo, de forma insistente e repetitiva, o primogênito berrar em nossos ouvidos sobre a noite perfeita que estragamos. Oras primo, noite perfeita para você, não. Mamy e seu querido sobrinho vasculharam os armários a procura de restos mortais e migalhas, esse foi o seu jantar, fomos todos dormir, no nosso caso, de forma rápida e pesada.
Acordamos daquele jeito, a feição de poucos amigos do primo mais velho já se fazia notar no café da manhã de domingo. Após longo silêncio perguntamos como tinha sido a peça de teatro, ele, empolgado e querendo se mostrar, contava detalhes que certamente nem ele havia notado, terminada a longa e chata explanação veio a reclamação. Imediatamente olhei para o outro primo e, cortando, começamos a contar sobre os lugares maravilhosos que havíamos visitado, os sabores e temperos que experimentamos, o melhor elixir saboreado e todas as mulheres interessantes que conhecemos.
Nossa primeira bebedeira e nossa imaginação ganharam de longe daquela peça boba para criança maior de DEZ anos .....

Viagem de Fusca

Estava com 14 anos quando meu primo mais velho, recém-formado, arrumara um emprego na capital e veio morar conosco, chegava a ser irritante a “puxação” de saco de mamy, ela estava irradiante com os seus “dois filhos” em casa. Perdi minhas regalias, mas ganhei um irmão, coisa que nunca havia tido. Agora podia trocar experiências e fazer perguntas dantes somente respondidas na rua. Tenho que revelar que foi uma boa época, apesar da divisão.
Com ele veio um Fusca, cinza, velho, onde seu maior atrativo era um alto falante de 16polegadas, único, que reinava na tampa traseira e fazia a velha carcaça tremer a cada batida grave emitida pelo Pionner prateado estampado no simples painel. Nessa época minhas idas à Bauru se intensificaram, de duas a três idas anuais passei a visitar minha terra natal a cada quinze dias, a facilidade da carona era notória. Contudo todo bônus tem seu ônus, o fusca não chegava à Bauru com um tanque de gasosa, e àquela época, os postos, por determinação de lei fechavam à noite, o que restava era carregar um galão de 15 litros de gasolina no banco traseiro, quando não dividia o pequeno piso com nossos pés, em viagens com maior quórum.
As longas viagens eram demoradas, o que fazemos hoje em duas horas e pouco, de fusca levava quatro a cinco, contando com a parada obrigatória para encher o tanque com a mangueira que sempre deixava gosto amargo na boca. As voltas eram piores, afinal era sempre domingo e o pensamento de início de semana fazia os ponteiros andarem com grande vagarosidade. Isso trouxe um hobby, sempre contava quantas faixas intermitentes da estrada passavam, contava de um até quanto aguentasse, normalmente chegava a cem. Isso cansava e me fez dormir na primeira e talvez na segunda volta, na terceira até isso me chateava, meu espírito ansioso se fartou de tanto marasmo, comecei assim a contar de forma diferente.
Passava uma faixa, contava um. Passava mais duas até contar dois, quando passavam três faixas contava três, e assim sucessivamente. Isso trouxe uma atenção diferente, pois além de demorar muito mais para chegar a um número final maior, obrigava a um maior controle, fazendo o tempo passar rápido. Porém logo chegara a inquietação, quantas faixas haviam passado quando cheguei a contar cinquenta. Comecei os testes e mais testes. As luzes de São Paulo já se faziam presentes quando finalmente cheguei a uma equação. Bastava elevar ao quadrado o número final, dividir por dois e subtrair o resultado por metade do número inicial, bingo, o resultado aparecia rápida e surpreendentemente.
Para os matemáticos e engenheiros (((x^2)/2)+1/2x) numa conta até dez: 10 ao quadrado = 100 / 2 = 50 + meio 10 = 55. Pronto, a minha nova brincadeira havia nascido, por mais algumas viagens eu ganharia do relógio e do tédio.
Estava na oitava série, e não tenho ideia do que isso se transformou hoje, mas, por coincidências da vida era aula de matemática, a professora, uma japonesa de pouca estatura e minúsculo sorriso entrou na sala, ordenou que os livros e cadernos fossem fechados e lançou o desafio. Se contarmos 1 + 2 + 3 + 4 .... até 50, quantos números unitários e somados teríamos. Imediatamente a memória das noites de domingo vieram à tona e identifiquei uma possibilidade de usar o descoberto.
50 x 50 = 2500 / 2 = 1250 + 25 = 1275
Gritei a resposta lá do fundo da sala, onde reinava solene. Imediatamente a ilustríssima professora gritou comigo, dizendo que havia sido clara na ordem sobre o livro fechado, oras, ele mal havia sido aberto durante todo o ano letivo, àquela ordem para mim ecoou como um alívio. Retruquei sem sucesso. Em seguida outro desafio, agora olhando fixamente para mim – E se fosse até mil? Oras,
1000 x 1000 = 1000000 / 2 = 500000 + 500 = 500500
Fui chamado à lousa.
Nunca o trajeto entre a última cadeira e a lousa fora tão grande e demorado, os olhares de toda a classe eram fichinha perto da indignação da professora, afinal de contas como o pior dos piores alunos poderia responder às perguntas sem qualquer tipo de trapaça. Ao chegar à frente fui sabatinado novamente, faça com 200, faça com 500. Depois de duas respostas corretas, apesar de certo tempo de raciocínio “exponenciado” pela pressão, ela questionou o porquê eu havia decorado a fórmula da Progressão Aritmética, pois bem, depois do xingamento recebido eu contei toda a história, da coincidência de raciocínio e que nunca havia ouvido falar na tal da fórmula sei lá do que. Desenhei na lousa a “minha” fórmula.
Como a maioria das professoras, ela me proibiu de usar a tal fórmula nas provas e disse, em alto e bom tom, que essa sorte não podia ser avaliada como competência. Que todos ali esquecessem essa passagem e que eu deveria me esforçar mais para aprender a literatura tradicional ao invés de buscar coisas novas.
Sorte minha que nunca esqueci, nem da história tampouco da lição “aprendida”. Que pena de nossas crianças.

Não foi; ia; era para ser; acabou não “fondo”

Tem coisas que não tem jeito mesmo, não sai nem que a vaca voe e tussa, já outras acontecem com tanta naturalidade que nem percebemos. Certa vez conheci uma garota estranha numa festa esquisita, mas quando percebi já estávamos juntos, quando percebi de novo estávamos namorando, sem que desse tempo de uma piscadela estávamos de aliança de noivado, e claro, quando me dei por mim a data do casamento estava marcada. 

Como chegamos até esse estágio, nada mais certo a fazer do que procurar algum lugar agradável para passarmos nossa lua de mel, até porque - e como primeiro aparte - o pai dela já havia preenchido uma parede com caixas de bebidas para nossa cerimônia, realmente eles estavam dando toda importância e pompa que a data merecia. Fui eu atrás de um hotel legal, o local já estava escolhido, Bahia.

Era um tempo difícil, todas as comodidades da internet ainda estavam engatinhando - estamos em 1993 - então as buscas eram feitas nos classificados dos jornais mesmo, toca passar na banca, comprar o estadão, e procurar uma agência de turismo. Podia ter inventado o Google né.

Após passar pela atendente, surge uma voz com sotaque cantado e meloso pronta a atender meus desejos, logo disse como queria o pacote, que seria minha lua de mel portanto o hotel deveria ser à altura, se possível já incluir algum passeio ou comodidades do local e assim vai. Como o tempo passava diferente àquela época, algumas horas depois a jovem vendedora me retornou com o pacote pronto, fechei na hora, mas não antes sem perguntar o que me assolava: 

- De onde você é? esse seu sotaque não é daqui né, você é do Sul?
- Isso mesmo, sou do interior de Santa Catarina e cheguei a pouco aqui em SP.
- Blá
- Blá
- Mais um pouco de Blá, e,
- Vamos sair?
- Sim, vamos.

Comecei a pensar que algo estava bem errado mesmo, acho que meu anjo da guarda estava querendo me dizer algo (excelente saída essa né hehehehe), como que eu estava flertando com a moça que acabou de vender minha lua de mel! Saímos.

Alguns dias passados estávamos, minha noiva e eu, num belo jantar romântico em um pequeno e charmoso francês, quando lá pelo final da janta e após alguns bons goles de vinho, perguntei se era isso mesmo que ela queria, se não havia dúvida alguma... ela imediatamente retrucou dizendo que se eu estava perguntando isso era porque EU estava com a dúvida... Bidú. Mais algumas palavras e ela sacou a aliança do dedo e me devolveu, num ato e gesto simbólico de encerramento do nosso relacionamento, sim, fácil assim, olha os anjos como estavam certos... Terminamos.

Passados uns dois meses desse turbilhão de coisas, chegou o dia da viagem, não vamos esquecer dela né, afinal já estava totalmente paga e as férias na empresa planejada, então eu não desperdiçaria essa chance, mas como fazer para ela endossar a passagem, tive que ligar. Refeita do susto inicial expliquei sobre a viagem, que eu já havia me planejado todo e que gostaria de ir - lembra do blá, põe mais um monte aqui. Mais uma vez percebi o quanto as pessoas podem ser surpreendentes e o quanto podemos errar nas avaliações e pré-julgamentos. Ouvi dela um enorme, rápido e sonoro...

- Eu vou viajar também, essa viagem era para mim então eu vou, pronto, simples assim.

Nos encontramos no saguão do aeroporto, assim que sentamos em nossos assentos perguntei como faríamos, afinal estariam esperando um casal recém-casados, com festas e mimos, além das pessoas que fatalmente conheceríamos no hotel e que nos dariam os parabéns. Mais uma surpresa, sem pestanejar ela disse que casados estaríamos, nem que somente por esses quinze dias, e dessa forma deveríamos nos portar. Assim feito, um casal feliz nas praias do sul da Bahia, festejando o que seria o começo de uma vida juntos, vida essa que durou até a porta do avião se abrir já na chuvosa e friorenta capital paulista, e dali darmos nosso último e definitivo adeus. nunca mais nos falamos.

Sorte ou Revés


Não vou mentir que sempre rotulei as pessoas como de sorte ou de azar, até quero acreditar que isso não exista, que competência é sempre mandatória da sorte, mas que tem gente que a vida sorri mais que para outras isso é inevitável, seja pelo belo nascimento, seja pelos ganhos em loterias e jogos, seja até por um casamento promissor... penso que estou na média, ora a sorte bate na porta, ora parece que meus pés estão virado pra trás. 

Fomos convocados para uma semana de reuniões no Rio de Janeiro, justo naquela semana que parece que todas as feiras e eventos tinham escolhido aquela cidade para ser sua sede, então nada de hotel. Depois do meu cliente fuçar e cavoucar a secretária me liga e diz que só achou vaga no Copacabana Palace, mas que só encontrou dois quartos disponíveis, a conta não fechava pois estávamos em três. Nem demorou muito para ela ouvir minha resposta de positivo, poderíamos dividir um quarto em dois, algo até normal no nosso trabalho, sempre preocupados com custos. Realizada a reserva fiquei até que feliz, pois apesar de só ser meio quarto, esse meio quarto era no "Copa", um ícone da cidade, onde já se hospedaram e até viveram grandes personagens da história brasileira e internacional, lá vamos nós.

Por questões de logística cada integrante da equipe iria chegar em um horário diferente naquela segunda-feira, eu fui o primeiro a fazer check-in naquele lobby muito bem decorado e grandioso, obviamente também muito bem atendido por funcionários treinados e preparados para receber grandes personalidades, nesse dia, era só eu. Chave na mão vamos conhecer o quarto e lá vem a primeira confusão, eles acharam que o meu quarto duplo, com outro nome de homem na reserva, era para um encontro amoroso e me deram um quarto com uma enorme cama de casal, toca pegar o elevador e descer novamente à recepção. Explicações dadas, um certo ar de constrangimento entre os atendentes e problema resolvido, pelo menos não posso queixar do tempo, foram muito ágeis na solução desse equívoco. Agora em quarto certo, devidamente decorado com duas camas de solteiro, era esperar o resto da tropa.

Terça foi um dia daqueles, saímos bem cedo do hotel - não antes de tomar um café da manhã em frente à piscina - e ficamos no trabalho até tarde, tanto que decidimos ir direto jantar, antes mesmo de voltar ao hotel, assim fizemos. Já era perto das dez e meia quando voltamos, cansados e sonhando com aquela cama de colchão convidativo, mas para nossa surpresa - a segunda da semana - ao entrarmos no quarto vimos nossas camas desarrumadas, toalhas sobre elas, da mesma forma que as deixamos pela manhã. Pensamos no que fazer, se deixaríamos isso de lado e deitaríamos, mas resolvemos descer, pelo menos para avisar e solicitar toalhas secas e limpas.

A cara do Gerente da Concierge foi de total espanto, não sabia para que lado corria e não parava de pedir desculpas, disse que nunca que nos deixaria dormir em um quarto sujo e desarrumado e se podíamos aguardar alguns minutos, inclusive no restaurante ou no bar com tudo pago pelo hotel, obviamente. Aceitamos. Sentamos numa mesa ao redor da piscina e, mesmo farto do jantar recém realizado, trouxeram alguns petiscos e drinks sugeridos pelo maître. Poucos minutos depois veio o tal Gerente dizendo que já poderíamos subir, que o quarto estava devidamente arrumado, mais algumas desculpas e se foi. Ficamos mais um pouco no bar, afinal estava de bom tamanho né, ao subir ainda encontramos amenidades em nossas camas, chocolates e souvenires da Natura. Valeu reclamar.


Quarta-feira não foi diferente a rotina, acordar cedo, tomar café de rei e ir trabalhar como escravo, a diferença é que havia marcado um happy-hour com amigos cariocas, então a rotina se repetiu, do trabalho direto para o bar. Alguns tragos, risadas e mentiras depois voltamos ao hotel, a essa altura bem cansados, do acumular da semana. Boa noite na recepção, elevador, porta do quarto e.... tudo desarrumado novamente. Até parecia mentira que naquele hotel estavam sendo tão relapsos, mas não poderíamos deixar de lado, claro que o pensamento das amenidades e regalias ganhas passou pela cabeça, descemos.

Quando o mesmo Gerente da Concierge nos viu de novo ele até brincou - Tudo em ordem hoje ou está bagunçado de novo! só que quase caiu de costas quando respondemos que não haviam arrumado por dois dias seguidos, coitado do homem entrou em parafuso, ligou na governança, entrava e saia do seu balcão com jeito de que queria comer alguém - e sem prazer. Novamente uma enxurrada de desculpas, ofereceu novamente o bar até que resolvessem, mas estávamos cansados mesmo então recusamos, dissemos que esperaríamos a arrumação na porta do quarto, subimos com ele a tira colo, já no corredor dava para avistar uns cinco carrinhos das arrumadeiras em frente ao nosso quarto, coisa de recorde mundial, não esperamos dez minutos e o quarto brilhava. Mais desculpas e fechamos a porta.

Já no meio da tarde de quinta-feira toca meu celular, o Gerente do hotel me ligando e dizendo que haviam feito várias reuniões para identificar o motivo do ocorrido e agradecendo pela nossa gentileza e educação, e que, para tentar minimizar o efeito do transtorno estava nos convidando para uma noite na boate do hotel, o recém reinaugurado "Bar do Copa", obviamente all inclusive. Marcamos de nos encontrar no lobby do hotel as dez e meia. Após banho e colocar o terno novamente, descemos. Lá estava ele já à nossa espera, nos levou até dentro do Bar, apresentando-nos à Hostess do local, que logo nos levou a uma mesa escolhida a dedo e nos deu duas notícias bem desagradáveis.

- Quero informar que vocês são convidados VIP´s do hotel e que absolutamente tudo é por nossa conta (e quando ela disse absolutamente tudo ela não estava brincando) e também que hoje é aniversário de um dos donos de uma famosa agência de modelos carioca, e que sua comemoração seria ali mesmo, inclusive com sua mesa bem ao nosso lado, então muitas modelos estariam no ambiente para lhe dar os parabéns. Ficamos até amanhecer. 

Ainda estou pensando se foi uma semana de sorte ou de azar...

Nem Fodendo, Véia

Em época de adolescência a rebeldia se faz presente nos mínimos detalhes, nesse tempo gostava muito de negar e repudiar toda e qualquer solicitação de mamy, apesar de que por vezes essas negações eram fundamentadas, pela idade a resposta que poderia ser um simples “não” fora substituída por um “nem fodendo véia”.
Antes de iniciar essa aventura, preciso contar mais sobre um personagem estreante deste espaço, uma prima de mamy, que conseguia ser mais louca e extravagante que a original, morava em Santos e tinha uma vida perfeita, até que trocou seu marido médico pelo amante boxeador e taxista, nada contra as profissões, mas pudera... Lembro-me do dia em que eu e meu “primo do meio” estávamos visitando-a e fomos convidados a conhecer seu novo amor, ao subir as escadas do pequeno prédio de três andares e sem elevador, demos de cara com o dito socando nossos ombros em sinal de boas-vindas, certamente essa prima aparecerá em outros eventos, mas voltemos à história.
O primo morava em casa, veio fazer cursinho e aproveitar um pouco mais da vida longe dos pais, em seu modo aproveitou bem, dormia o dia todo. Certa noite mamy chegou eufórica, havia recebido um telefonema de convite da prima – agora separada e morando em São Paulo – para uma visita em seu apartamento no centro da cidade, já havia ido lá uma vez, local sombrio, escuro, prédio sem porteiro, daqueles que o interfone com a numeração dos apartamentos fica expostos à rua, conhecendo muito bem mamy e sua prima, minha resposta não poderia ser outra - “nem fodendo véia” - contudo meu primo era mais educado e solícito, talvez por achar que morava em casa deveria atender aos pedidos de sua tia, se arrumaram e foram ao centro da cidade. Voltaram depois de horas, já se passava da meia noite e não entendi o porquê meu primo estava ofegante e pálido, entrou no quarto que dividíamos sem dar uma única palavra, após insistentes perguntas ele foi se soltando, tendo a certeza de que havia chego em terreno conhecido e seguro e relatou...
Ao chegar ao apartamento da prima, local exatamente como o descrito acima, ele resolveu que iria esperar no carro, afinal na ida mamy revelou o porquê da visita, a dita prima estaria com um amigo que, após uns goles e tragos, receberia entidades que destrinchavam suas vidas passadas e futuras. Estacionou o carro à frente do prédio e viu mamy adentrando após apertar algum botão e sumir pela porta de ferro e vidro, diz ele que nesse momento que foi reparar com detalhes onde realmente estava, alguns poucos transeuntes passavam pelo local e suas caras sempre o faziam imaginar desfechos assustadores, então resolver sair dali também, pensou que ficando no apartamento da prima estaria mais seguro, acertou, em parte.
A primeira tarefa seria adivinhar qual o número apertar naquele imenso interfone de botões pequenos e iluminados, sem qualquer nome ou indicação teria que ser no chute, sem nenhuma equação matemática foi na sorte, depois de algumas respostas malcriadas uma senhora de voz trêmula e velha indicou o número certo a apertar. A porta se abriu e dava num longo corredor, os elevadores ficavam à esquerda e tinham suas portas com rabiscos e dizeres de fácil identificação mesmo depois de algumas mãos de verniz, aguardou o pequeno, porém barulhento elevador chegar e subiu.
Na chegada ao andar já sentiu certo odor estranho, incenso misturado com charuto, velas e bebida, realmente deve ser explosivo. Com receio, mas sem ter o que fazer, tocou a campainha e aguardou alguns momentos que pareceram uma eternidade, ouviu uma voz conhecida pedindo que aguardasse um instante, o fez. A porta se abriu lentamente, de repente uma “figura” estranha estava entre ele e o apartamento, um senhor de meia idade, seu traje preto da cabeça aos pés ainda eram recobertos por um manto bicolor, por fora preto fosco e por dentro vermelho brilhante, uma barba desleixada e cabelos levemente compridos e despenteados, charuto na boa e segurando um copo americano de conteúdo alcoólico. Com a mão em riste e olhar fixo para os olhos do primo ele se apresentou: - Prazer, Exu Caveira
Conhecendo meu primo tenho certeza que ele preferiria os meliantes desconhecidos ao indivíduo com nome e sobrenome. Relutou, mas entrou, quando não se tem opção cometemos atos impensados. Ao primeiro passo recebeu uma borrifada de um desodorante spray, daqueles que ficam mesmo depois de quem o usa partir, e recebeu “ordens” do elemento, toda sua vida estava traçada e nada que fizesse poderia mudar, e assim foi, por horas a fio ouvindo, ora em tom rouco ora em gritos entusiásticos, os conselhos e histórias do autêntico e único representante oficial da marca Exu.
“Eu te disse que era roubada”, foram as palavras que declamei ao ouvir tal relato, agora ele aprendeu mais uma, a educação pode custar caro sem uma avaliação prévia. Já eu, continuei com a certeza absoluta que minha frase de efeito, por mais chocante que poderia parecer, tinha seu mérito e significado. NEM FODENDO VÉIA.