Não poderia ser em hora mais
oportuna a escrita deste conto, afinal estou no meio do mato e do nada, e essa
noite dormi acompanhado de uma pequena e graciosa rã. Lembrei dos programas do
Discovery Channel sobre as venenosas rãs de nossas matas, o que me tranquilizou
é saber que quanto mais colorida, mais venenosa – algumas chegam a paralisar um
macaco grande somente com o encostar dos dedos em suas costas – pois a minha
companheira de quarto era bem branquela, quase uma lagartixa, então sem
problemas com veneno. Também não tenho pavor deles, o chato é o barulho, quando
eu apagava as luzes e desligava a televisão ela vinha à vida e saia pelo
quarto, ora perambulando, ora saltitando, em busca de um lanchinho rápido.
Dormi com a luz acesa e ela “presa” debaixo da cama.
Bem, remontemos a uns 28 anos passados, estávamos eu, o Hans e o
Claudinho (nomes fictícios.... hehehe) na bela e confortável casa dos pais do
Claudinho, bem no alto de uma das muitas montanhas de Campos do Jordão – cidade
de veraneio dos paulistas – e como todo inverno na região montanhosa e de
grande altitude, fazia muito frio. Os passeios diurnos eram sempre os mesmos,
ir ao centrinho ver o movimento, beber algo e esperar o relógio apontar que a
noite estupidamente gelada estava por chegar, então era hora de nos recolhermos
à casa, tomarmos chocolate quente e nos jogarmos nos enormes sofás de couro,
cobertos até os dentes. Como gosto de um agito, essa vida tranquila e monótona
deu para mim em poucos dias, começamos a pensar em outras atividades mais
desafiadoras, até que o Claudinho teve a excelente ideia de irmos caçar rã.
O planejamento foi iniciado, roupas aos montes - lembrem-se de que as
rãs têm hábitos noturnos, portanto a caçada deveria seguir esse horário – sacos
plásticos de lixo para os pés, e claro, arpões feito de espetos de churrasco
presos e reforçados com cabos de vassoura, nos “uniformizamos” para a batalha e
aprovamos a armadura, tira tudo e vamos ao próximo passo. Teria que ser naquela
noite, não queríamos esperar mais, então fomos a um bar de caiçaras (regionais)
à tarde e conversamos com alguns “amigos” do Claudinho, um deles topou
imediatamente e disse que iria chamar mais dois colegas para nos acompanhar,
como iríamos de Jipe caberiam os seis. Voltamos à casa, esperançosos de que
fosse uma noite daquelas: diferente, inovadora, desafiadora e inédita. Foi.
Anoiteceu, nos paramentamos e entramos os três no carro, todos ocupando
o mesmo banco inteiriço do velho e semidestruído jipão sessenta e bolinha. Os
dois bancos em perpendicular e sem forração almofadada ficariam para os
acompanhantes. Saímos. Alguns solavancos pelas ruins estradas de terra da
região e chegamos ao bar novamente, local esse designado como ponto de encontro
do primeiro elemento, lá estava ele já mais para lá do que para cá e com todos
os indicativos de que dali ele não saíra desde nossa conversa matutina. Pulou
para dentro da caçamba já arrastando o segundo elemento, fomos à busca do
terceiro. No caminho “saculejante”, eles conversavam sobre quem iria levar o
“LP”, afinal, que bosta viria a ser esse tal de LP? Olhamos um para o outro e
baixinho tentávamos descobrir. Lanterna e Pilha foi o mais votado, nós
estávamos com as nossas. Lança Perfume também foi cogitado, será que
apostaríamos corrida com as rãs até elas se cansarem... Chegamos ao lar do
terceiro elemento, este portava um embrulho debaixo do braço, o mistério estava
por acabar, ao pular na caçamba foi logo mostrando seu Litro de Pinga de
gargalo único e compartilhado. Pegamos a estrada em direção ao sul de Minas
Gerais, local da caçada. Coisa de umas duas horas de viagem pelas mais
estreitas e sinuosas estradas de terra, chegamos a mais um bar, esse quase no
meio do nada mesmo, o LP foi reposto, esticamos as pernas e seguimos viagem,
agora certos do caminho explicado com detalhes pelo dono do boteco.
Conversando com os caiçaras, descobrimos que teríamos que “invadir”
fazendas para realizar a caça, isso trouxe certa preocupação, mas essa missão
era de retorno impossível, continuamos nossa jornada até nos encontrarmos, de
frente, com uma procissão. Havia centenas de pessoas, todos moradores das
fazendas da região, segurando velas bem compridas, daquelas que se veem em
altares de igrejas, muitas mulheres com seus rostos cobertos por um fino e
quase transparente pano branco, muitos feitos de tricô, os homens com seus
melhores trajes, os mais importantes seguravam uma espécie de maca suspensa,
que sustentava e conduzia uma imagem de santo – não sei dizer qual. Paramos em
sentido contrário e começou a primeira disputa da noite, eles não queriam nos
deixar passar no meio da procissão, diziam e alguns gritavam que isso seria um
desaforo com o santo, tentávamos argumentar e meus doze anos de colégio de
padres católicos serviu para convencê-los, de que quando fosse ordenado iria
voltar lá e excomungar todos eles. Depois de muita lábia eles aceitaram passar
ao nosso lado, desde que não movimentássemos o carro até o último integrante
passar.
Topamos.
Aguardamos.
Seguimos.
Logo à frente chegávamos à primeira fazenda a ser invadida, como não
poderia ser diferente, um brejão, e como não poderia ser diferente – parte
dois, eu pus o pé para fora do carro e tomei um baita escorregão, ensopado e
todo cheio de lama, foi assim que iniciei a jornada predatória. Antes de passar
pela cerca de madeira nos separamos em grupo, cada um dos cosmopolitas iria
acompanhar um caiçara, nossa tarefa, iluminar. Um detalhe é que quando pegamos
nossas lanças e colocamos nossos casacos e sacos, eles tiravam os tênis e
camiseta e ficavam de short, um rindo do outro, eles acabaram se dando melhor.
Saímos à caça. A noite estava bem escura, portanto a única claridade provinha
de uma pequena lanterna que havia sido gentilmente fornecida a mim pelo
Claudinho, claro que ele carregava um canhão e seu primo, o Hans – que
mereceria uma história à parte por ser o cara mais mauricinho que conheço –
ganhou outra que portava umas seis pilhas das grandes. Logo paramos e os
caiçaras disseram que assim não daria para continuar, estávamos lentos e a
feira seria pequena, mudamos as duplas, a mim sobrou o Claudinho com a
lanterninha, o fracasso estava desenhado.
As duas duplas estavam longe quando a nossa lanterna começou a falhar,
até esse momento nosso inventário de rãs era de contagem zero, na verdade mal
olhávamos para baixo, nossa maior preocupação era de não levarmos tombos,
afinal nossas botas de montanhismo foram reprovadas depois de encharcadas de
lama, parecia que portávamos um par de esquis. Chegamos a um pequeno córrego,
bem estreito, porém de certa profundidade, como eu carregava a lanterna, o
Claudinho logo disse: - vai à frente e depois ilumina para eu pular, ou seja,
eu iria no escuro. Mirei um local que parecia seguro do outro lado da borda e
pulei, levantei as mãos por ter parado de pé, faltava o Claudinho, dei dois
passos para trás e disse, iluminando o local onde escolhera, pula aqui que é
seguro. Juro que sem querer, a lanterna apagou instantes antes de ele pular,
quando voltou a funcionar, após dois murros e duas batidas, cadê o cara? Olhei
para baixo e o vi entalado quase até o pescoço, submerso naquele córrego que
trazia, além de um fio de água, dejetos vegetais e animais, ajudei-o a sair mas
ficou quase que insuportável ficar ao lado de tamanho “futum”.
As lanternas já estavam bem distantes quando percebemos que elas já
haviam percorrido o circuito e voltado para o jipe, apressamos o passo e fomos
ao encontro deles, parecia que o fim estava próximo, ledo engano. Contagem das
rãs. Zero. Eles portavam sacos de lixo preto com algumas dezenas em cada um. E
agora, vamos? Perguntamos. Claro que não. Responderam. Vamos comer as rãs que
caçamos. Entramos no jipe e lá fomos até um casebre meio que abandonado e no
meio do nada, que disseram ser de um colega. No caminho já silenciosamente me
perguntava, como ou não como. Ao chegarmos ao casebre feito de ripas de madeira
e barro, mal conseguia ficar de pé dentro dele, acho que quem construir o fez
de forma personalizada e customizada para ele, certamente um homem um metro e
meio de altura, andar lá dentro só de cabeça arriada e bem corcunda.
A sala comportava uma poltrona de um lugar, mais uma cadeira de madeira
pregada por um cego, no quarto um colchão de solteiro estendido no chão, na
cozinha uma pia dessas que se compra pronta e lojas de construção e o banheiro
ficava lá fora, nem fui ver. Assim que entramos um dos caiçaras foi fazer uma
panelada de arroz, enquanto os outros dois matavam e limpavam as rãs, nesse
interim apareceu um cachorro do Fantasma Zero, era só osso o coitado, ficou nos
rodeando e com livre acesso aos cômodos da casa. Aguardamos o preparo na
entrada da casa, pelo menos o visual era deslumbrante, o dia já estava querendo
nascer, desenhando no horizonte raios azuis claros e alaranjados, que riscavam
o céu escuro e de muitas estrelas. Logo gritaram que a bóia estava no ponto,
naquele momento já havia esquecido a conversa íntima e pulei em cima da
travessa de rãs, já o arroz ninguém conseguiu tirar da panela, alguém colocou
ela no chão para alimentar o cachorro com cara de faminto, ele olhou, cheirou e
deu as costas, como diriam meus amigos nortistas: “pense numa coisa ruim”.
Já era perto do meio dia quando chegamos em casa. Exaustos, imundos,
fedendo e com fome, tomei um banho quente e fui para a cama, claro que depois
de um Toddy com pão de forma e requeijão.
“Rãs”, desse dia em diante, somente dividindo o quarto comigo, e em
silêncio, senão...
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