quarta-feira, 29 de abril de 2020

Tio Sam – Segunda Parte


Cansado e extasiado, esses sentimentos me acompanharam junto a ida à capital norte americana, nos parques o de sempre, andar muito, filas longas e atrações além das imaginárias, minha viagem poderia ter se encerrado por aí, mas agora começara a viagem de mamy. O hotel ficava no meio da quadra, no centro, tudo muito parecido com o que tínhamos por aqui, contudo uma novidade fez os olhos pequenos e negros brilharem, uma porta, uma simples porta que dava acesso ao hotel, de vidro e “giratória”. Hoje temos muitas delas por aqui, na verdade nos irritamos em demasia com elas, que normalmente nos fazem de bobo nas entradas dos bancos, quem nunca voltou antes da faixa amarela algumas vezes, até que a autoridade liberasse a entrada, com a desconfiança sobre sua índole, só não entendo como que os bandidos de verdade adentram com tamanha facilidade.
Após a arrumação habitual no quarto, mamy deixou claro que seu “parque de diversões” começaria ali, e que eu deveria aguentar da mesma forma que ela aguentara os “mickeys” e os “mouses”, concordei, tamanha euforia me faria concordar com tudo. Mamy se arrumou e foi estrear o bar do hotel, me dediquei a procurar garotos no saguão, minutos depois estava jogando xadrez com "amigos" de partes diferentes do mundo, a mímica aprimorada em Miami ajudou muito, certo que, para uma jogatina não é necessária tanta comunicação assim.
Era final da tarde do primeiro dia, surpreendentemente ainda não havia aprontado nada, calmo, sentado pacientemente à frente do tabuleiro e do adversário, aquilo estava me entediando, e muito, quando mamy saiu do bar, já acompanhada de uma turma dividida entre pessoas de nossa excursão e alguns outros gatos pingados fisgados pelo caminho, me avisou que iria a um show, fora do hotel, aquela ladainha toda sobre cuidados e responsabilidade vieram à tona novamente, hoje analisando, devia ser uma cena surreal, uma jovem e bonita dama dando conselhos a um garoto de oito anos, sobre como se comportar numa cidade estrangeira, sozinho. Assim que entraram nos taxis, o sentimento de liberdade conversou com o diabinho sentado em meu ombro esquerdo, não queria mais ficar ali parado, na verdade já havia olhado e admirado por várias vezes àquela porta linda e diferente, rodando a cada solicitação de entrada ou saída, a proposta foi feita aos companheiros.
A brincadeira seria a seguinte, postados na esquina, correríamos até o hotel, ganharia quem conseguisse fazer a porta girar em seu eixo por mais vezes. Claro que uma pequena aposta foi lançada, não poderia ser diferente. Todos em posição, correu o primeiro, três giros. Correu o segundo, dois giros e pouco, chegara minha vez, tomei fôlego, me posicionei como numa final dos cem metros e fui, a meta era desviar dos transeuntes sem perder velocidade, abrir uma parábola e mirar firmemente na porta, sincronizar a passada, esticar os braços e “vrum”.
Um tranco seguido de um barulho seco alertou todos os funcionários e hóspedes que estavam no saguão, ao olhar avistaram um garoto, preso na porta, uma das pernas não acompanhou o corpo e ficou em outro compartimento da porta, um borrachão separava corpo e membro, nenhuma dor, somente uma sensação de ridículo nunca dantes experimentada, a face rubrou quase que imediatamente, a única reação que tive foi a de gritar, pedindo que alguma boa alma empurrasse a porta e me ajudasse a chegar ao meu destino. Aqui, meia dúzia de pessoas faria certa força, outros tantos empurrariam a perna, outros ainda buscariam um pouco de sabão para passar na perna descoberta e unida à borracha. Lá, chamaram os bombeiros.
Impressionante, o meu relógio biológico registrou míseros minutos quando a primeira viatura estacionou na entrada do hotel, alardeando a todos que passavam com suas sirenes e luzes, desceram para estudar o caso, logo a rua estava tomada, até policiais a cavalo faziam o trabalho de isolar a área. Decisão tomada, iriam retirar a porta, neste momento ainda me restavam forças para implorar por um empurrão, nada adiantou, iniciaram o desmonte, claro que além da cena ridícula, ninguém podia entrar tampouco sair, pois aquela era a única passagem social. Procuraram pelos meus responsáveis, sem êxito. Ferramentas sendo utilizadas, muita habilidade, porta no chão, por um momento um alívio tomou conta de mim, estava livre, não pela perna que nada sentia, mas a vergonha e o medo eram terríveis, cabisbaixo, fui saindo da posição e entrando no hotel até que um braço forte me puxou, quando olhei, um dos bombeiros, o capacete branco indicava que ele se diferenciava dos outros, colar cervical, cintas me prendiam a uma placa de madeira, me colocaram na ambulância, cinco piscadas de olhos e já estava cortando o trânsito em direção ao hospital.
No trajeto tentei por várias vezes explicar que estava bem, porém aqueles homens não tinham a mesma vontade dos garotos em entender mímica, nada podia fazer, fui. Um oficial de polícia me acompanhava durante todos os exames no hospital, a cada intervalo me perguntava algo sobre "father" ou "mother", imaginei uma mímica sobre um pai que estaria sei lá aonde e uma mãe aproveitando a noite na capital do mundo, mas desisti, esperamos.
Mamy chega desesperada no hospital, acompanhada de um judeu que fazia parte do grupo conhecido no hotel, conversaram com os médicos e policiais, umas belas broncas em todos, fomos liberados, neste momento eu insistia com um “tá vendo, eu disse que não tinha nada”, contudo me explicaram que as leis gringas são rigorosas, e que o hotel poderia ser responsabilizado caso eu sofresse algum trauma decorrente do incidente, novamente me calei, não era hora de esbravejar. Na volta ao hotel, o cavalheiro judeu que falava espanhol e que trabalhava viajando pelo mundo, enfaticamente aconselhou mamy a me colocar num “kibuts”, aos desavisados, comunidades judaicas perdidas no meio do deserto.
Mamy podia ser meio maluca, mas nossa parceria era sólida e saudável. Nunca mais o vimos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário