A ditadura estava ainda a
toda prova, apesar das pequenas aberturas, ainda tínhamos um governo militar
atuante e forte, o DOPS perseguia e controlava a censura, enfim, vivíamos
fechados pela redoma invisível do poder e das vontades dos militares e suas
crenças, mas não vou politizar a história, somente mesmo para contextualizar.
Era sete de setembro, data
mais do que esperada pelos militares, que aproveitavam a máquina para fazer
suas propagandas políticas e mostrar todo seu poderio bélico.
Estávamos em 1978 e por conta óbvia, tinha dez anos. Sempre fora um
menino ativo, apesar de meu porte avantajado, gostava de participar de todas as
atividades que pudesse, então não foi espanto de ninguém quando entrei na banda
do colégio, àquela época, chamada de fanfarra. Gostava do barulho, gostava da
bagunça e havia me identificado com alguns instrumentos, além de poder passar
mais algumas horas em companhia dos amigos de colégio, ao invés da solidão
caseira. Instrumento designado, caixa. Ensaiávamos duas a três vezes por
semana, sempre no período da tarde, a sala de instrumentos ficava,
estrategicamente, no terceiro andar do prédio sem elevadores, acredito que
fosse para o aquecimento, não quero acreditar em burrice. Divertia-me muito com
tudo aquilo, apesar de nunca ter afeto por nada muito rígido, gostava da
marcação de espaço, braço direito esticado para frente e para o lado, seus
dedos deveriam encostar-se ao ombro do vizinho, sem um centímetro a mais ou a menos,
regras e mais regras. Éramos afinados, o som nascia e fluía com certa
facilidade, acredito que por esse motivo fomos convidados a participar do
desfile da independência, que acontecia anualmente nos palanques construídos ao
longo da Avenida Tiradentes e hospedava centenas de homens em seus uniformes
impecavelmente engomados e cheios de medalhas e estrelas, ainda havia milhares
de espectadores cercados por um cordão de isolamento.
Os uniformes chegaram, eram compostos por calças e paletó azuis com
ombreiras largas e cobertas por cordões dourados, sapato preto e um chapéu de
gosto duvidoso, também azul com plumas brancas no topo. Quando experimentei em
casa, ficou absurdamente ridículo, contudo como não estaria sozinho nisso,
encarei. Na data do evento acordei apressado, atrasado, o sono sempre foi meu
carma, sacola com o uniforme na mão e corrida a pé até o colégio, que ficava a
umas dez quadras de casa, chegando fui direto ao vestiário onde a maioria
absoluta dos meninos já estava em fase final da vestimenta, ainda teríamos a
companhia de algumas meninas, que abririam nosso desfile, portando bandeiras do
Brasil, Estado, Cidade e da Congregação Marista, nosso colégio. Aprontei-me
rapidamente e peguei meu instrumento, fui um dos últimos a entrar no ônibus, já
cheio, tive que me contentar com o corredor, em pé, no fundão, saímos.
O dia estava claro e quente, muito quente, o verão naquele ano chegara
cedo, o sol parecia que adorava nossas fantasias, pois ardia com louvor em
nossas cabeças. Formação pronta, esperávamos pela chamada de nossa vez, nesse
momento certo calafrio tomou conta de meu corpo, uma pequena vontade de ir ao
banheiro se fez presente - o famoso número dois - não havia saída, era aguentar,
acho que daria.
Fomos chamados, alinhamos com os braços e entramos na avenida, o couro
dos instrumentos marcavam as batidas e eram acompanhadas pelos sopros das
cornetas e trombones, estava bonito, os primeiros aplausos surgiram logo nos
primeiros passos, sinceramente acho que foi por pena, um bando de garotos
vestidos iguais a palhaços embaixo de um sol castigante.
Paraparapara papa para parapapapara, a cada batida da caixa a barriga
dava um novo tom, a pequena vontade crescera, sentia aquela sensação de estar
na porta, infelizmente não estamos falando de uma simples vontade, estamos
falando de dor de barriga, que normalmente gera um efeito e um resultado não
muito agradável, descompassei os passos, tentei apertar as pernas, fui
advertido pelos colegas ao lado de que estava fora da marcha, corrigi. Olhei acima
dos da frente e observei que ainda estávamos a meia quadra do palanque
principal, por onde deveríamos passar olhando para o lado e reverenciando os
importantes presentes, a este momento já sabia que estavam ali, Governador e
Prefeito, mais alguns Coronéis e Generais. Passadas acertadas, o incomodo agora
era o da cinta, que apertava a barriga quase fazendo-a explodir, pensei o que
estava fazendo ali, que ideia imbecil a minha, poderia estar em casa, na cama,
e a qualquer necessidade tendo o banheiro logo a poucos passos, e, quando
pensei em banheiro, aconteceu uma reação imediata, saiu.
Sentia o quente escorrer pelas pernas, ainda tinha que segurar pois o
corpo anunciava que não tinha terminado o serviço, chegamos ao palanque, olhei
para o lado mais para ver se alguém havia percebido do que por reverência, um
olho para o lado, outro para baixo, não podia deixar rastros, sorte que a meia
branca três quartos aguentaram bem a bronca. Chegamos finalmente ao final da
apresentação, contudo a via sacra ainda era longa, nos dispersamos, enquanto
todos queriam comentar sobre o sucesso eu queria entrar no ônibus e sumir dali
o mais rápido possível, desta vez fui para o fundão por situação óbvia, bancos
vazios e eu lá, no fundo e em pé, sem sentido para os demais que entravam.
Voltamos para o colégio, no caminho nenhum comentário, apesar de alguns meninos
olharem discretamente para o solado de seus sapatos.
Teria que tomar uma decisão, ir ao banheiro do colégio ou não, pensei
no que adiantaria, decidi ir para casa, faltavam apenas dez quadras para um
belo banho, comecei a andar e relaxar, isso fez o corpo concluir sua tarefa. A
meia branca três quartos e o sapato preto brilhante ajudaram, mas o rastro era
visível, sem olhar para trás, na verdade sem olhar para nada, segui.
Quando cheguei em casa mamy veio gritando dizendo que havia visto o
desfile pela TV, que estávamos maravilhosos e tudo mais, a gritaria terminou ao
chegar perto, deu lugar a risada, porém a risada deu lugar ao choro, quando
informei que o uniforme deveria ser devolvido no dia seguinte.
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