quarta-feira, 29 de abril de 2020

Fanfarra de 7 de setembro


A ditadura estava ainda a toda prova, apesar das pequenas aberturas, ainda tínhamos um governo militar atuante e forte, o DOPS perseguia e controlava a censura, enfim, vivíamos fechados pela redoma invisível do poder e das vontades dos militares e suas crenças, mas não vou politizar a história, somente mesmo para contextualizar.

Era sete de setembro, data mais do que esperada pelos militares, que aproveitavam a máquina para fazer suas propagandas políticas e mostrar todo seu poderio bélico.
Estávamos em 1978 e por conta óbvia, tinha dez anos. Sempre fora um menino ativo, apesar de meu porte avantajado, gostava de participar de todas as atividades que pudesse, então não foi espanto de ninguém quando entrei na banda do colégio, àquela época, chamada de fanfarra. Gostava do barulho, gostava da bagunça e havia me identificado com alguns instrumentos, além de poder passar mais algumas horas em companhia dos amigos de colégio, ao invés da solidão caseira. Instrumento designado, caixa. Ensaiávamos duas a três vezes por semana, sempre no período da tarde, a sala de instrumentos ficava, estrategicamente, no terceiro andar do prédio sem elevadores, acredito que fosse para o aquecimento, não quero acreditar em burrice. Divertia-me muito com tudo aquilo, apesar de nunca ter afeto por nada muito rígido, gostava da marcação de espaço, braço direito esticado para frente e para o lado, seus dedos deveriam encostar-se ao ombro do vizinho, sem um centímetro a mais ou a menos, regras e mais regras. Éramos afinados, o som nascia e fluía com certa facilidade, acredito que por esse motivo fomos convidados a participar do desfile da independência, que acontecia anualmente nos palanques construídos ao longo da Avenida Tiradentes e hospedava centenas de homens em seus uniformes impecavelmente engomados e cheios de medalhas e estrelas, ainda havia milhares de espectadores cercados por um cordão de isolamento.
Os uniformes chegaram, eram compostos por calças e paletó azuis com ombreiras largas e cobertas por cordões dourados, sapato preto e um chapéu de gosto duvidoso, também azul com plumas brancas no topo. Quando experimentei em casa, ficou absurdamente ridículo, contudo como não estaria sozinho nisso, encarei. Na data do evento acordei apressado, atrasado, o sono sempre foi meu carma, sacola com o uniforme na mão e corrida a pé até o colégio, que ficava a umas dez quadras de casa, chegando fui direto ao vestiário onde a maioria absoluta dos meninos já estava em fase final da vestimenta, ainda teríamos a companhia de algumas meninas, que abririam nosso desfile, portando bandeiras do Brasil, Estado, Cidade e da Congregação Marista, nosso colégio. Aprontei-me rapidamente e peguei meu instrumento, fui um dos últimos a entrar no ônibus, já cheio, tive que me contentar com o corredor, em pé, no fundão, saímos.
O dia estava claro e quente, muito quente, o verão naquele ano chegara cedo, o sol parecia que adorava nossas fantasias, pois ardia com louvor em nossas cabeças. Formação pronta, esperávamos pela chamada de nossa vez, nesse momento certo calafrio tomou conta de meu corpo, uma pequena vontade de ir ao banheiro se fez presente - o famoso número dois - não havia saída, era aguentar, acho que daria.
Fomos chamados, alinhamos com os braços e entramos na avenida, o couro dos instrumentos marcavam as batidas e eram acompanhadas pelos sopros das cornetas e trombones, estava bonito, os primeiros aplausos surgiram logo nos primeiros passos, sinceramente acho que foi por pena, um bando de garotos vestidos iguais a palhaços embaixo de um sol castigante.
Paraparapara papa para parapapapara, a cada batida da caixa a barriga dava um novo tom, a pequena vontade crescera, sentia aquela sensação de estar na porta, infelizmente não estamos falando de uma simples vontade, estamos falando de dor de barriga, que normalmente gera um efeito e um resultado não muito agradável, descompassei os passos, tentei apertar as pernas, fui advertido pelos colegas ao lado de que estava fora da marcha, corrigi. Olhei acima dos da frente e observei que ainda estávamos a meia quadra do palanque principal, por onde deveríamos passar olhando para o lado e reverenciando os importantes presentes, a este momento já sabia que estavam ali, Governador e Prefeito, mais alguns Coronéis e Generais. Passadas acertadas, o incomodo agora era o da cinta, que apertava a barriga quase fazendo-a explodir, pensei o que estava fazendo ali, que ideia imbecil a minha, poderia estar em casa, na cama, e a qualquer necessidade tendo o banheiro logo a poucos passos, e, quando pensei em banheiro, aconteceu uma reação imediata, saiu.
Sentia o quente escorrer pelas pernas, ainda tinha que segurar pois o corpo anunciava que não tinha terminado o serviço, chegamos ao palanque, olhei para o lado mais para ver se alguém havia percebido do que por reverência, um olho para o lado, outro para baixo, não podia deixar rastros, sorte que a meia branca três quartos aguentaram bem a bronca. Chegamos finalmente ao final da apresentação, contudo a via sacra ainda era longa, nos dispersamos, enquanto todos queriam comentar sobre o sucesso eu queria entrar no ônibus e sumir dali o mais rápido possível, desta vez fui para o fundão por situação óbvia, bancos vazios e eu lá, no fundo e em pé, sem sentido para os demais que entravam. Voltamos para o colégio, no caminho nenhum comentário, apesar de alguns meninos olharem discretamente para o solado de seus sapatos.
Teria que tomar uma decisão, ir ao banheiro do colégio ou não, pensei no que adiantaria, decidi ir para casa, faltavam apenas dez quadras para um belo banho, comecei a andar e relaxar, isso fez o corpo concluir sua tarefa. A meia branca três quartos e o sapato preto brilhante ajudaram, mas o rastro era visível, sem olhar para trás, na verdade sem olhar para nada, segui.
Quando cheguei em casa mamy veio gritando dizendo que havia visto o desfile pela TV, que estávamos maravilhosos e tudo mais, a gritaria terminou ao chegar perto, deu lugar a risada, porém a risada deu lugar ao choro, quando informei que o uniforme deveria ser devolvido no dia seguinte.

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