quarta-feira, 29 de abril de 2020

Deolinda


Se tem um conto do vigário em que todos já caíram é o do convite:
- Minha “mina” vai levar uma amiga, você não quer ir junto?
Com intuito aventureiro saímos naquele sábado à noite, amigo e namorada calorosamente sentados no banco traseiro e a amiga simpática ao meu lado. Rodamos a cidade em busca de uma parada agradável e escura, até que...
Chegamos ao cruzamento entre Pinheiros e Vila Madalena – conhecido reduto noturno da capital – quando “lemos” a intenção de um senhor - muito bem vestido com seu terno marrom riscado e aparentando seus 70 e poucos - em atravessar a rua, paramos. Entre uma passada a frente e uma de recuo, ficou nítida a dificuldade em que aquele distinto senhor passava.
Primeiro Erro. (sem contar o aceite do convite)
De parados, estacionamos. Descemos e fomos ajudá-lo em sua travessia. Claro que uma conversa acompanhou as apresentações e logo ficamos sabendo que além dele estar em sentido contrário de seu destino, este estava muito perto.
Segundo Erro.
Agora minha companhia no banco dianteiro não era mais a amiga, e sim aquele simpático senhor e o nosso trajeto alterou para a devida entrega.
- Moro na Cônego Eugênio Leite, não me lembro o número.
Com essas palavras seguimos na jornada. Como a rua possui apenas três quarteirões, não me impressionou o desconhecimento da numeração, essa está fácil, pensei. Não minto que àquele momento já me via aos beijos com a amiga, afinal onde ela iria encontrar tamanha gentileza e desapego, certamente eu seria o príncipe encantado daquele final de semana. Atravessamos a rua inteira uma vez e nada, voltamos, nada, retornamos, nada... Nesse momento os suspiros imaginários começaram a descer e encher outro órgão do corpo.
- Oras, meu senhor, vou passar beeeeem devagar agora hein, olhe com atenção.
- É ali, aquela casa ali. Essas palavras entraram como música boa em nossos ouvidos. Paramos.
Terceiro Erro.
Agora percebo que o certo seria deixar o velhinho (senhor o caraio) e sumir dali, mas novamente os pensamentos libidinosos tomaram conta do fraco cérebro. Descemos todos e fomos à busca da campainha. O cenário era sinistro, a porta antiga de madeira e vidro levava a uma escada lateral que dava acesso a casa, embaixo uma porta de ferro do que outrora seria a garagem, hoje alugada para o comércio, no primeiro andar uma janela velha de madeira com ripas faltando estava aberta, por onde passava a luminosidade de uma TV ligada, luzes apagadas.
Tão logo descemos o velhinho começou a olhar fixamente para a janela e a gritar desesperadamente pelo nome de sua amada. DEOLINDA, DEOLINDA, DEOLINDA. Logo juntamos as vozes e a gritaria se generalizou. Nada de resposta. As tentativas se alongaram e a imaginação despertou. A velha morreu, o velho não aguentou, saiu andando e endoidou geral. Estava claro que dentro daquela janela aberta estava a Deolinda estirada na cama, precisávamos agir.
Quarto Erro.
Enquanto o velhinho juntava vozes com as amigas, os rapazes foram tentar abrir a porta, porrada atrás de porrada, a madeira era antiga, porém resistente. Aumentamos a intensidade na medida em que a rouquidão tomava conta das gargantas. A porta era forte, mas a fechadura se mostrou frágil, não aguentou a sequência e cedeu, porta aberta. Logo na entrada um amontoado de cartas dedurava os dias sem ninguém passar por ali, só se via a escada, que lançava alguns degraus e logo sumia numa curva de cento e oitenta graus. Por um instante o silêncio tomou conta de todos.
Agora que chegamos naquele ponto como poderíamos recuar? A pergunta ficou sem resposta, o medo do desconhecido se generalizou e não sabíamos de entrávamos ou corríamos. O velho quis entrar.
Quando os primeiros passos foram dados em direção à escada, ouvimos um barulho e paramos, todos os olhares se fixaram na escada. Um vulto. Um pé. Uma perna cambaleante. Degrau após degrau aquela perna descia de forma vagarosa e sinuosa. Segundos ou minutos depois, surge um outro velho, completamente bêbado, vestindo um pijama surrado e murmurando palavras quase que indecifráveis. O “nosso” velho partiu para cima, cadê a Deolinda???
Desfecho
A gritaria se iniciou novamente, agora com mais uma voz. Quem era esse velho, de Deolinda morta passamos a crer na Deolinda traidora, será??? Cadê a Deolinda??? Essa discussão perdurou até o "velho bêbado" questionar quem éramos e principalmente, porque sua porta estava quebrada? Não obteve resposta, cadê a Deolinda???
Minutos intermináveis se passaram, nada resolvido, até que a polícia apareceu. Medo, como explicaríamos a porta? Quem éramos nós? Quem era o "nosso" velho? Todas as respostas davam razão ao "outro". A cada questionamento do "velho bêbado", falávamos junto, em tom maior e tentando distrair a atenção. Depois de documentos vistos e muita conversa, chega a notícia.
Nosso velho tinha fugido de uma casa de repouso em Itapecerica da Serra, andou até lá sei lá porque, se perdeu e achou dois casais de babacas que o acolheram e viajaram em suas histórias alucinógenas. Foi carregado pela viatura. Fomos embora o mais rápido que pudemos. O coitado do "velho bêbado" ficou lá, em sua casa, sem porta e sem entender nada. Merecia uma bela dose.
Deixamos as meninas na mesma hora, tinha se passado muito tempo e o cansaço e adrenalina já nos tinha consumido. Nunca mais as vi.

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