Se tem um conto do vigário
em que todos já caíram é o do convite:
- Minha “mina” vai levar uma amiga, você não quer ir junto?
Com intuito aventureiro saímos naquele sábado à noite, amigo e namorada
calorosamente sentados no banco traseiro e a amiga simpática ao meu lado.
Rodamos a cidade em busca de uma parada agradável e escura, até que...
Chegamos ao cruzamento entre Pinheiros e Vila Madalena – conhecido
reduto noturno da capital – quando “lemos” a intenção de um senhor - muito bem
vestido com seu terno marrom riscado e aparentando seus 70 e poucos - em
atravessar a rua, paramos. Entre uma passada a frente e uma de recuo, ficou
nítida a dificuldade em que aquele distinto senhor passava.
Primeiro Erro. (sem contar o aceite do convite)
De parados, estacionamos. Descemos e fomos ajudá-lo em sua travessia.
Claro que uma conversa acompanhou as apresentações e logo ficamos sabendo que
além dele estar em sentido contrário de seu destino, este estava muito perto.
Segundo Erro.
Agora minha companhia no banco dianteiro não era mais a amiga, e sim
aquele simpático senhor e o nosso trajeto alterou para a devida entrega.
- Moro na Cônego Eugênio Leite, não me lembro o número.
Com essas palavras seguimos na jornada. Como a rua possui apenas três
quarteirões, não me impressionou o desconhecimento da numeração, essa está
fácil, pensei. Não minto que àquele momento já me via aos beijos com a amiga,
afinal onde ela iria encontrar tamanha gentileza e desapego, certamente eu
seria o príncipe encantado daquele final de semana. Atravessamos a rua inteira
uma vez e nada, voltamos, nada, retornamos, nada... Nesse momento os suspiros
imaginários começaram a descer e encher outro órgão do corpo.
- Oras, meu senhor, vou passar beeeeem devagar agora hein, olhe com
atenção.
- É ali, aquela casa ali. Essas palavras entraram como música boa em
nossos ouvidos. Paramos.
Terceiro Erro.
Agora percebo que o certo seria deixar o velhinho (senhor o caraio) e
sumir dali, mas novamente os pensamentos libidinosos tomaram conta do fraco
cérebro. Descemos todos e fomos à busca da campainha. O cenário era sinistro, a
porta antiga de madeira e vidro levava a uma escada lateral que dava acesso a
casa, embaixo uma porta de ferro do que outrora seria a garagem, hoje alugada para
o comércio, no primeiro andar uma janela velha de madeira com ripas faltando
estava aberta, por onde passava a luminosidade de uma TV ligada, luzes
apagadas.
Tão logo descemos o velhinho começou a olhar fixamente para a janela e
a gritar desesperadamente pelo nome de sua amada. DEOLINDA, DEOLINDA, DEOLINDA.
Logo juntamos as vozes e a gritaria se generalizou. Nada de resposta. As
tentativas se alongaram e a imaginação despertou. A velha morreu, o velho não aguentou,
saiu andando e endoidou geral. Estava claro que dentro daquela janela aberta
estava a Deolinda estirada na cama, precisávamos agir.
Quarto Erro.
Enquanto o velhinho juntava vozes com as amigas, os rapazes foram
tentar abrir a porta, porrada atrás de porrada, a madeira era antiga, porém
resistente. Aumentamos a intensidade na medida em que a rouquidão tomava conta
das gargantas. A porta era forte, mas a fechadura se mostrou frágil, não aguentou
a sequência e cedeu, porta aberta. Logo na entrada um amontoado de cartas
dedurava os dias sem ninguém passar por ali, só se via a escada, que lançava
alguns degraus e logo sumia numa curva de cento e oitenta graus. Por um
instante o silêncio tomou conta de todos.
Agora que chegamos naquele ponto como poderíamos recuar? A pergunta
ficou sem resposta, o medo do desconhecido se generalizou e não sabíamos de
entrávamos ou corríamos. O velho quis entrar.
Quando os primeiros passos foram dados em direção à escada, ouvimos um
barulho e paramos, todos os olhares se fixaram na escada. Um vulto. Um pé. Uma
perna cambaleante. Degrau após degrau aquela perna descia de forma vagarosa e
sinuosa. Segundos ou minutos depois, surge um outro velho, completamente
bêbado, vestindo um pijama surrado e murmurando palavras quase que
indecifráveis. O “nosso” velho partiu para cima, cadê a Deolinda???
Desfecho
A gritaria se iniciou novamente, agora com mais uma voz. Quem era esse
velho, de Deolinda morta passamos a crer na Deolinda traidora, será??? Cadê a
Deolinda??? Essa discussão perdurou até o "velho bêbado" questionar
quem éramos e principalmente, porque sua porta estava quebrada? Não obteve
resposta, cadê a Deolinda???
Minutos intermináveis se passaram, nada resolvido, até que a polícia
apareceu. Medo, como explicaríamos a porta? Quem éramos nós? Quem era o
"nosso" velho? Todas as respostas davam razão ao "outro". A
cada questionamento do "velho bêbado", falávamos junto, em tom maior
e tentando distrair a atenção. Depois de documentos vistos e muita conversa,
chega a notícia.
Nosso velho tinha fugido de uma casa de repouso em Itapecerica da
Serra, andou até lá sei lá porque, se perdeu e achou dois casais de babacas que
o acolheram e viajaram em suas histórias alucinógenas. Foi carregado pela
viatura. Fomos embora o mais rápido que pudemos. O coitado do "velho
bêbado" ficou lá, em sua casa, sem porta e sem entender nada. Merecia uma
bela dose.
Deixamos as meninas na mesma
hora, tinha se passado muito tempo e o cansaço e adrenalina já nos tinha
consumido. Nunca mais as vi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário