quarta-feira, 29 de abril de 2020

Nem Fodendo, Véia

Em época de adolescência a rebeldia se faz presente nos mínimos detalhes, nesse tempo gostava muito de negar e repudiar toda e qualquer solicitação de mamy, apesar de que por vezes essas negações eram fundamentadas, pela idade a resposta que poderia ser um simples “não” fora substituída por um “nem fodendo véia”.
Antes de iniciar essa aventura, preciso contar mais sobre um personagem estreante deste espaço, uma prima de mamy, que conseguia ser mais louca e extravagante que a original, morava em Santos e tinha uma vida perfeita, até que trocou seu marido médico pelo amante boxeador e taxista, nada contra as profissões, mas pudera... Lembro-me do dia em que eu e meu “primo do meio” estávamos visitando-a e fomos convidados a conhecer seu novo amor, ao subir as escadas do pequeno prédio de três andares e sem elevador, demos de cara com o dito socando nossos ombros em sinal de boas-vindas, certamente essa prima aparecerá em outros eventos, mas voltemos à história.
O primo morava em casa, veio fazer cursinho e aproveitar um pouco mais da vida longe dos pais, em seu modo aproveitou bem, dormia o dia todo. Certa noite mamy chegou eufórica, havia recebido um telefonema de convite da prima – agora separada e morando em São Paulo – para uma visita em seu apartamento no centro da cidade, já havia ido lá uma vez, local sombrio, escuro, prédio sem porteiro, daqueles que o interfone com a numeração dos apartamentos fica expostos à rua, conhecendo muito bem mamy e sua prima, minha resposta não poderia ser outra - “nem fodendo véia” - contudo meu primo era mais educado e solícito, talvez por achar que morava em casa deveria atender aos pedidos de sua tia, se arrumaram e foram ao centro da cidade. Voltaram depois de horas, já se passava da meia noite e não entendi o porquê meu primo estava ofegante e pálido, entrou no quarto que dividíamos sem dar uma única palavra, após insistentes perguntas ele foi se soltando, tendo a certeza de que havia chego em terreno conhecido e seguro e relatou...
Ao chegar ao apartamento da prima, local exatamente como o descrito acima, ele resolveu que iria esperar no carro, afinal na ida mamy revelou o porquê da visita, a dita prima estaria com um amigo que, após uns goles e tragos, receberia entidades que destrinchavam suas vidas passadas e futuras. Estacionou o carro à frente do prédio e viu mamy adentrando após apertar algum botão e sumir pela porta de ferro e vidro, diz ele que nesse momento que foi reparar com detalhes onde realmente estava, alguns poucos transeuntes passavam pelo local e suas caras sempre o faziam imaginar desfechos assustadores, então resolver sair dali também, pensou que ficando no apartamento da prima estaria mais seguro, acertou, em parte.
A primeira tarefa seria adivinhar qual o número apertar naquele imenso interfone de botões pequenos e iluminados, sem qualquer nome ou indicação teria que ser no chute, sem nenhuma equação matemática foi na sorte, depois de algumas respostas malcriadas uma senhora de voz trêmula e velha indicou o número certo a apertar. A porta se abriu e dava num longo corredor, os elevadores ficavam à esquerda e tinham suas portas com rabiscos e dizeres de fácil identificação mesmo depois de algumas mãos de verniz, aguardou o pequeno, porém barulhento elevador chegar e subiu.
Na chegada ao andar já sentiu certo odor estranho, incenso misturado com charuto, velas e bebida, realmente deve ser explosivo. Com receio, mas sem ter o que fazer, tocou a campainha e aguardou alguns momentos que pareceram uma eternidade, ouviu uma voz conhecida pedindo que aguardasse um instante, o fez. A porta se abriu lentamente, de repente uma “figura” estranha estava entre ele e o apartamento, um senhor de meia idade, seu traje preto da cabeça aos pés ainda eram recobertos por um manto bicolor, por fora preto fosco e por dentro vermelho brilhante, uma barba desleixada e cabelos levemente compridos e despenteados, charuto na boa e segurando um copo americano de conteúdo alcoólico. Com a mão em riste e olhar fixo para os olhos do primo ele se apresentou: - Prazer, Exu Caveira
Conhecendo meu primo tenho certeza que ele preferiria os meliantes desconhecidos ao indivíduo com nome e sobrenome. Relutou, mas entrou, quando não se tem opção cometemos atos impensados. Ao primeiro passo recebeu uma borrifada de um desodorante spray, daqueles que ficam mesmo depois de quem o usa partir, e recebeu “ordens” do elemento, toda sua vida estava traçada e nada que fizesse poderia mudar, e assim foi, por horas a fio ouvindo, ora em tom rouco ora em gritos entusiásticos, os conselhos e histórias do autêntico e único representante oficial da marca Exu.
“Eu te disse que era roubada”, foram as palavras que declamei ao ouvir tal relato, agora ele aprendeu mais uma, a educação pode custar caro sem uma avaliação prévia. Já eu, continuei com a certeza absoluta que minha frase de efeito, por mais chocante que poderia parecer, tinha seu mérito e significado. NEM FODENDO VÉIA.

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