Hoje eu entendo claramente
que os dois empregos de mamy, faziam sua conta bancária alternar, hora com
sobra, ora com comedimento. O Holerite emitido pelo Estado pagava as contas
básicas, os honorários do escritório de advocacia traziam os supérfluos, que
flutuavam de maior a menor tamanho.
Eu estava com sete anos e os
dez quarteirões que separavam a minha casa do colégio era meu martírio diário.
Andava solitário a primeira metade da caminhada, após isso me encontrava com um
amigo e percorríamos o restante do percurso juntos. Já a volta era totalmente
solitária. Mamy então, em época de fartura, decidiu contratar o transporte
escolar. Fim das caminhadas, mais tempo na cama, início da engorda.
Acertado os detalhes, a Kombi branca com faixas amarelas estava na
porta do prédio no horário combinado, apesar de ser um dos que morava mais
próximo do colégio, pelo itinerário do tio da perua, era um dos primeiros a ser
pego e o último a ser devolvido, claro que nada poderia ser tão simples assim.
Foi uma época bacana, acabei fazendo amigos que não conhecia, a festa começava
cedo, logo no agrupamento de duas ou três crianças.
Independente da bagunça, chegava no colégio mais disposto, era sem
dúvida, um conforto extra. Contudo a volta era um pouco chata, todos cansados
faziam as brincadeiras serem comedidas e, como disse antes, era o último a
descer, o que fazia percorrer um longo caminho sozinho dentro da Kombi. Falando
nela, seus bancos de plástico preto, com furinhos antiderrapantes, sem encosto
de cabeça, os vidros eram pequenos e suas minúsculas aberturas eram o único
meio de refrescamento. A porta que dava acesso a parte traseira, bólido onde
iam as crianças, era dividida em duas folhas, com todas as ferragens à mostra,
expondo o mecanismo de fechamento e trava da porta. O tio era o motorista, a
tia ia sentada ao lado dele, responsável por abrir e fechar a porta e manter um
nível de atividade tolerável dentro da perua.
Sempre fui muito curioso, não tinha botão que não gostasse de apertar e
gaveta que não gostasse de abrir, e sempre o fazia de forma muito sorrateira,
lembro que brincava de mexer nas coisas sem deixar ninguém ver ou perceber
posteriormente. Aquelas ferragens na porta da Kombi sempre chamaram minha
atenção, era uma maçaneta branca e curvada, que para a direita abria a porta e
para a esquerda a trancava, esse movimento fazia subir ou abaixar as barras de
ferro expostas. Nenhuma criança podia mexer na maçaneta, a tia, a cada parada,
descia e fazia às vezes no comando da parafernália metálica.
Chegamos ao destino do penúltimo garoto, naquele dia em particular, não
parava de pensar em como eu poderia mexer naquela porta, era minha maior
ambição do momento. Mal o tio parou a Kombi e eu pulei em direção à porta e
girei para a direita a maçaneta, instantaneamente as duas faces da porta se
abriram e o garoto desceu, a tia mal tinha aberto sua porta e me olhou com
certo ar de reprovação, não liguei e também não dei tempo de resposta, desci
com um pé, puxei as portas e girei a maçaneta para a esquerda, portas fechadas
e travadas. Lembro da cara de riso pequeno do tio, acredito que já imaginando
numa forma de economizar o salário da comandante da porta, engatou a primeira
marcha e saímos, ainda tínhamos muitos quarteirões até me deixar em casa.
Entramos na rua da fábrica da Antarctica, era horário de almoço e
muitos operários estavam sentados ao longo do cumprido muro, tomando sol e
conversando sobre a vida, a rua era de paralelepípedo e a Kombi chacoalhava
muito, parecendo sair do eixo. Um solavanco, dois solavancos, no terceiro a
porta não aguentou e se abriu, eu que estava encostado nela fui arremessado
para fora da Kombi e rolei quicando nas pedras da rua, por incrível que pareça
o motorista, nem sua majestosa ajudante, perceberam que eu não ocupava mais o
meu lugar, seguiram. Os operários da fábrica correram e se dividiram, metade
veio me socorrer e outros tantos foram atrás da Kombi, logo no primeiro
semáforo avisaram do ocorrido.
Meu uniforme era uma camisa de manga curta, de tecido branco e fino,
quando me levantaram ela estava rasgada e esgarçada, o branco de misturava com
o vermelho oriundo de vários arranhões e cortes, logo que a Kombi voltou o
motorista foi quase linchado, salvo por estar na companhia da jovem mulher e de
uma criança, me colocaram na Kombi e fomos embora. No caminho o tio se
perguntava o que havia ocorrido, prontamente a tia não se fez de rogada - culpa
dele, que não soube fechar a porta direito. Muito provavelmente ela estava
certíssima, mas era somente silêncio que ouviam de mim.
Cheguei em casa e fui direto para o chuveiro, passei Mertiolate (nessa
época ele ardia muito) nos arranhões e fui deitar, nada a fazer. Quando mamy
chega à noite, me vê todo machucado e o uniforme naquele estado, contei a
versão oficial, que eu queria mexer na fechadura e não soube, isso pouco
importou a ela, no dia seguinte estávamos os dois à porta do Diretor, show e
escândalo.
As feridas se cicatrizaram rapidamente, mas o
pior de tudo, voltei a andar os dez quarteirões a pé.
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