quarta-feira, 29 de abril de 2020

Memória de criança

Por ser filho único de uma família pequena, desde cedo fui praticamente criado com meus primos, eram dois meninos e uma menina, contudo sempre houve certo ciúme originado pelos presentes que eram reservados em épocas natalinas, achava fortemente que meu primo mais velho seria o verdadeiro filho de mamy, tanto pelo carinho quanto pelos presentes ofertados por ela. As lembranças são de tempos diferentes, mas marcadas e sempre lembradas nas histórias familiares, se tornaram ícones sobre a memória infantil, não sei ao certo o porquê guardamos tais passagens, de tantas outras essas se registram e parecem que não quererem partir ao longo dos anos.
Caso um:
Como de praxe, assim que acabava o ano letivo eu era colocado em um ônibus em sampa com destino ao interior, onde na chegada meus tios já me esperavam com calorosa recepção, era férias, mamy viria bem perto do natal, passando somente poucos dias, a festa era geral, porém durava poucas horas até que os pegas e discussões entre a molecada se iniciasse. Neste ano o calor estava intenso e passávamos o dia à beira da piscina, na verdade dentro dela, lembro de me queimar forte, a ponto de terem que rasgar à tesoura uma camiseta para poderem passar pomada contra queimadura, mas tudo isso fazia parte do contexto, não me abatia, até que chegou o natal, na tarde do dia vinte e quatro mamy chega com o carro forrado de caixas de presentes, como a ansiedade era tamanha, não esperávamos o conhecido ritual do pé da árvore, descarregávamos o carro de olho no cartão que identificava o dono do embrulho e imediatamente achado o papel era rasgado formando uma nuvem de picotes, era nossa neve.
Minha caixa era de tamanho médio, porém demasiadamente pesada para meu pequeno tamanho, isso geralmente traz boas surpresas, apressadamente a abri e realmente foi uma surpresa, uma vitrola somada a dois discos coloridos de histórias infantis, “soldadinho de chumbo” e “o pequeno príncipe”. A intenção deve ter sido das melhores, mas a última coisa que me interessava à época seria uma vitrola, ainda nem sabia quem era Raulzito, decepção. O primo do meio foi o segundo a chorar quando recebeu um jogo chamado Petróleo, onde se colocavam moedas dentro de uma chaminé e a certo momento elas se espalhavam pelo chão, num saltitar pipoquesco, além de graça alguma ainda se perdia mais tempo recolhendo as tais moedas do chão do que brincando. Chegou a vez do queridinho, caixa também bem grande, de peso maior ainda, ao abrir a cara de espanto de todos seria digna de foto, um jogo de pilotar um carrinho de corrida, o que de mais moderno existia, tanto que os adultos ficaram alucinados no jogo, imagine eu...
Caso dois:
A madrinha de meu primo do meio passou para busca-lo e escolher seu presente de natal, como lá estava eu de “dois de paus” fui junto. Descemos até o calçadão de Bauru, as lojas chamavam os fregueses e a quantidade enorme de pessoas que atrasaram as compras faziam o burburinho do local mais parecer um ataque de abelhas africanas, a passos largos e de mãos dadas para não nos perdermos fomos à loja previamente escolhida pela madrinha, era um verdadeiro oásis de brinquedos e bugigangas, paramos à frente de uma vitrine recheada de carrinhos e ferro da Matchbox que eram o desejo de consumo de qualquer menino, segundos depois veio a palavra mágica da madrinha para o afilhado, escolha uns quatro. Passei a ajudar na decisão, certo que pela circunstância ouviria algo bem mais modesto porém similar, ele acabou pegando um caminhão cegonha, uma moto e dois esportivos, tudo na cesta chegara minha vez, ela se virou e foi em direção ao caixa, fiquei parecendo um poodle olhando fixamente para seus olhos só a espera de um carinho, acho que dei na cara pois a caminho da saída ela pegou uma caixa e passou às minhas mãos, uma moto de plástico de tamanho mediano, toda preta, que não mexia as rodas tampouco virava o guidão, virou brinquedo do cachorro...
Caso três, a revanche:
Tudo bem, eu tinha a Tia Laura. Irmã de vovó, ajudou a me criar e tinha realmente um carinho todo especial por mim, daqueles gratuitos. Lembro que tentei eternizá-la, pois quando estava bem velinha a mamy sempre a visitava e tentava me levar junto sem sucesso, quando retornava da visita sempre dizia que suas últimas palavras eram que ela não morreria sem me ver, parece maldade, mas estava tentando prolongar ao máximo sua coexistência conosco. Alguns anos depois a insistência e brigas eram tantas que resolvi me deixar levar, fui visita-la, morreu.
As lojas da Tilibra eram o Mappin do interior, vendiam de tudo e mais um pouco, certa tarde estávamos brincando em casa quando a Tia Laura aparece e me convida para uma ida à Tilibra, de forma inversa ao Caso Dois, desta vez meu primo me acompanhou de coadjuvante. Passeávamos pelos corredores admirando a diversidade expostas nas prateleiras, apesar do convite ser para tomarmos um lanche sempre “sobrava” algum regalo. Nesse dia parece que o humor e a carteira estavam em alta, pois já na primeira curva ela pegou um saquinho com meia dúzia de bois, cabras, ovelhas e porcos e ofertou ao meu primo, era uma lembrança, mas ele aceitou com cara de feliz, andamos mais um pouco, ele segurando o saquinho e eu de mãos vazias, não seria possível, algo estava por vir afinal era a Tia Laura.

Passadas a frente e acaba o corredor, as prateleiras ficam para trás e demos de cara no balcão da atendente, meus olhos tilintaram somente ao ouvir o pedido da tia à balconista, embrulha o “Forte Apache”...

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