quarta-feira, 29 de abril de 2020

Tio Sam – Parte Final


A terceira e última parte de nossa viagem chegara, estávamos em NY, a cidade dos sonhos de consumo e das novidades, visto que nesta época as importações eram proibidas no Brasil e tudo do bom e melhor ficava do lado de fora, novamente nos alojamos em um hotel na região central, apesar de que mal sabia onde ficava o norte ou o sul. As instruções foram repassadas nos mínimos detalhes, incluindo pormenores detalhistas ao extremo, porém, nada adiantou, bastou a primeira tarde para que mamy se aprontasse para uma noite nova iorquina e eu desci ao lobby do hotel, desta vez nada de crianças, os adultos passavam como se estivessem sempre apressados, mal olhavam nos olhos uns dos outros, nem sequer aquele balançar de cabeça incitando um cumprimento era visto, me senti deslocado do ambiente, então resolvi dar uma volta pela rua mesmo. Ainda estava claro quando comecei minha jornada, uma enxurrada de pessoas indo e vindo, seus destinos pareciam certos, pois suas passadas eram firmes e largas. Bem vestidas e mal-humoradas, logo esta impressão ficou.
Muitas lojas, muitas novidades, assim ficou difícil andar em linha reta, conforme plano inicial, pois seria somente girar cento e oitenta graus e retornar, tentei fixar bem as quadras em que virei, marcando os pontos de referência, e contando tantas quadras, uma curva a direita, tantas outras, curva a esquerda, e assim fui. Não demorou muito para a tarde se transformar em noite, apesar do sol ainda relutar em dormir e soltar raios no horizonte, a lua já se fazia presente e a escuridão se esvaia com o ascender da iluminação pública. Sinceramente não me recordo do quanto tempo se passara, como sempre a fome anunciou sua chegada e procurei algo para comer, apesar das inúmeras lanchonetes, fiquei relutante em entrar sozinho e “mimicar” solicitando algo, optei por entrar em um supermercado, achei que seria mais seguro e menos estranho, afinal quantos garotos andam pelos corredores dos mercados enquanto suas mães ali fazem compras. Aproximei-me do corredor das bolachas e admirei a variedade, tentava decifrar o conteúdo de cada pacote, um mais belo e tentador que outro, peguei dois pacotes e quando estava virando para ir em direção às bebidas fui pego por um homem alto, de cabelo e barba bem feitos, usava um terno e uma capa de chuva como sobretudo, fiquei olhando fixamente para ele enquanto ele dizia palavras indecifráveis para minha cultura, alguns segundos se passaram quando ele iniciou uma conversa em português – você não está na excursão brasileira? Demorei certo tempo para responder, tentei pensar nas consequências das possíveis respostas, dizia que não e tentaria voltar ao hotel sozinho ou dizia a verdade e certamente novas broncas seriam ouvidas, bem, a sorte não bate tantas vezes à porta, disse sim.
Fui acordado para tomarmos o café da manhã, tentei relutar em vão, mamy insistira, descemos. A noite fora tranquila demais, afinal quando chegamos, mamy estava em algum show ou boate da cidade, fui dormir pensando em como fazer para nunca mais encontrar aquele homem, isso também funciona, contar homens de terno ao invés de carneiros. Logo na entrada do salão avistei o dito cujo e as demais pessoas de nossa excursão, imediatamente os olhares se voltaram para nossa chegada, enquanto mamy preparava um bom dia entusiástico, pensava em uma versão menos catastrófica para a história, claro que não me deram ouvidos, nos crucificaram em bom tom, mamy ficou perplexa e a toda hora me olhava e solicitava que eu confirmasse a história, só me restava abanar a cabeça em sentido de positivo, ao final assumi total culpa, dizendo que ela havia me instruído e que eu descumprira tais recomendações, ficaria de castigo pelo resto do dia, não iria passear, me conformei, tomei café da manhã e acompanhei os dois ônibus “brasileiros” saindo para um tour.
Seria nossa última noite na terra do Tio Sam, os adultos da excursão programaram uma noitada daquelas, contudo ordenaram que seus filhos mais velhos tomassem conta do pirralho, eu. Os garotos e garotas na casa dos dezesseis anos certamente acharam um porre a companhia imposta, foram me buscar e lá fui eu para o quarto de um deles, onde todos se juntaram e estavam conversando. Logo que os pais saíram o plano diabólico deles foi posto em prática, ligaram para a recepção solicitando a liberação dos canais “pay per view”, claro que eu não estava entendendo nada, nem das conversas, nem do que estava por vir, fiquei mais confuso ainda quando na televisão homens e mulheres, nus, se esfregavam e se apertavam, aos berros. “Luz Del Fuego” era o nome do primeiro filme que assistimos, quase ninguém piscava e poucas vezes alguém tinha coragem de tecer um comentário, as meninas claramente “rubradas” enquanto os garotos flexionavam os braços tentando mostrar que estariam para chegar na idade adulta, na verdade, aquilo estava me deixando de saco cheio, só fiquei porque minha cela não tinha chave.
Último dia, nosso voo noturno ainda estava distante, implorei a mamy uma visita à Estátua da Liberdade, sem êxito, me respondeu que não estava ali para ver estátua, disse clara e abertamente que se ela não quisesse ir, tudo bem, porém eu iria, ela sorriu, se virou de lado e continuou a se deleitar com a ressaca da noitada, aquilo foi encarado como um consentimento. Pegar um taxi e mostrar o panfleto da estátua foi fácil, nos dirigimos para lá, na chegada o problema maior apareceu, como iria comprar ingresso para atravessar o braço de mar até a ilha onde repousa, imponente, o presente francês à América. Fiquei na moita, ao lado da fila de médio tamanho, quando reparei duas mulheres, com várias crianças falando um dialeto mais parecido com o de costume, enchi o peito para parecer maior e fui testar pela primeira vez meu “portunhol”, pensei que seria mais difícil, porém foi só entregar o dinheiro do ingresso e pedir com muita gentileza, segundos depois não só tinha o ingresso, como também novos amigos para apreciar o passeio, por sinal, maravilhoso. O retorno ao hotel foi rápido, tinha medo de perdermos o avião por alguma travessura minha, quando apareci mamy perguntou onde eu estava esse tempo todo, respondi que fora visitar a tal da estátua, ela sorriu e me deu dois tapinhas nas costas, o ar incrédulo e de deboche tomou conta do ambiente, não acreditara que isso seria possível, voltamos ao Brasil. Ao desarrumar as malas, já em casa, ela achou várias lembranças da estátua, se virou e perguntou novamente - onde você foi naquele dia? Esperando mais uma bronca, errei, ela me abraçou e disse que estava orgulhosa de mim, que apesar de tudo me ensinara a me virar sozinho.
Passaram-se mais de quarenta anos dessa história, hoje, gostaria de virtualmente retribuir aquele abraço maroto e dizer, obrigado mamy.

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