quarta-feira, 29 de abril de 2020

Páscoa na Praia . parte final


Chovia aos cântaros quando finalmente encontramos as três casas geminadas recém construídas, as ruas do novo bairro eram de terra e distantes do centro comercial e divertido da cidade, a praia mais próxima estava a cinco ou seis quadras, o tempo não ajudava, naquelas condições aproveitaríamos apenas o cheiro da maresia. Uma de esquina, outra no meio, a terceira era vizinha de um terreno ainda desocupado, que servira de depósito de objetos dos mais variados. Pequenas, todas tinham a mesma disposição, uma sala na entrada, dois quartos do lado direito eram divididos pelo banheiro e, à esquerda, a cozinha e um quintal com tanque e varal. Apesar de construção nova a mobília certamente veio de algum brechó ou da casa de algum parente morto. O que separava os fundos, entre uma casa e outra, era um baixo muro, onde com uma esticada de corpo era possível ver as intimidades do vizinho, quando houvesse.
Sentimos falta do conforto de nossas casas e, principalmente, de nossos carros, a geografia do local somada ao mau tempo indicava que nosso feriado estaria fadado à reclusão. Escolhemos ficar na casa do meio e fomos todos arrumando nossas camas no quarto dos fundos, ficaríamos juntos, as conversas eram a diversão disponível. Abrimos o que restou do assalto às geladeiras, com dificuldade ligamos o fogão e achamos panelas razoáveis, ceiamos e fomos deitar, a noite anterior havia roubado grande parte de nossas forças e teríamos ainda três dias de feriado pela frente.
Era noite, estávamos deitados praticando o exercício da fala e da risada, no quarto dos fundos não havia janela, uma porta balcão de treliça de madeira dava acesso ao quintal, fechada, continha a invasão de pernilongos, borrachudos ou muriçocas, nesta condição entravam às dezenas e não aos milhares. O calor insuportável era parcialmente banido pela ação de um ventilador dos primórdios de sua invenção, a cada rodada lateral despejava uma pequena golfada de ar quente, entre risadas e caça aos voadores, nos abanávamos. No meio da aventura ouvimos um barulho vindo da casa ao lado, a de esquina, nos silenciamos por instantes, a imaginação fértil própria da adolescência aflorou e começamos a regurgitar ideias, ninguém se aventuraria numa espiada. Não precisamos, o motivo do barulho veio até nós, um facho de luz logo após uma pancada seca, própria de um salto, iluminou a porta balcão, fazendo que uma luminosidade adentrasse o quarto, o silencio era percebido pela possibilidade em ouvir os corações saltando, outro barulho seco e a luz se fora. Estava claro que não estávamos sós, e que apesar do proprietário não saber, lá havia inquilinos, nos certificamos sobre portas e janelas trancadas e escoradas com móveis e utensílios barulhentos e fomos dormir, era a única coisa a fazer, demorou, mas conseguimos.
Muito cedo, muito calor, os lençóis molhados foram o despertador perfeito para o início do dia, ao abrirmos a porta, chuva, como sempre torrencial. Os potes trazidos de casa já estavam vazios e a fome era grande, por horas escolhemos compartilhar esse mal-estar a sair pela rua barrenta.
Havia passado do horário do almoço quando decidimos procurar alguma padaria por perto, quatro quadras depois achamos uma venda, pães, bolos, salgados e um litro de leite para cada, voltamos felizes e ansiosos com a fartura. O leite ainda era do tempo do saquinho, que após aberto, deve ser condicionado em outro local, onde? Um pegou uma panela, outro um jarro, eu terminei o pouco conteúdo que restara numa garrafa de refrigerante de limão. Preparamos um lanche e sentamos à mesa quadrada, com quatro lugares. No primeiro gole senti certo gosto azedo no leite, mas fiquei quieto, o recipiente certamente influenciara o sabor deixando rastros de seu conteúdo anterior, fiquei quieto para não ser alvo de risadas, logo veio à surpresa, todos os quatro litros estavam azedos, não era culpa dos recipientes, mas da má guarda em seu local de venda. Tomamos os quatro litros.
A noite chegara e as portas e janelas estavam devidamente trancadas e escoradas, fomos para o quarto, as conversam da noite anterior deu lugar a ansiedade pela visita anunciada, não precisamos esperar muito e os barulhos voltaram, o salto, a luz, dessa vez acompanhado de pausa, o vizinho estava em nosso quintal e não havia se utilizado dele como passagem, ali ele parara, certamente ele acompanhou a movimentação diurna da casa e teve a certeza de que havia apenas três pirralhos na moradia, bateu na porta balcão e nos chamou. Silêncio, nova batida acompanhada de uma frase mal construída. – Abre aí mano, sou do bem, ou algo semelhante, atravessou as frestas, fizemos uma rápida conferência, facas estrategicamente escondidas em local de fácil uso, abrimos.
Um rapaz de vinte e poucos anos ficou ali parado, desligou sua lanterna prateada e estendeu a mão em sentido de comprimento, fomos recíprocos. Sem entrar ele contou brevemente sua história, dormia ali desde a fase da construção, era bandido sim, roubava turistas, seus carros e o que mais pudesse carregar e revender nas “bocas”, fazendo assim alguns trocados e levando a vida, nos reconfortou dizendo que nada de mal queria para nós, claro que a condição seria o aceite e o silêncio sobre ele. Aceitamos. Ele se foi do mesmo modo que chegara, pulando o baixo muro lateral. Fomos dormir já com as malas prontas, chega de tanta tortura.
A surpresa foi grande quando abri a porta de casa, normalmente voltava depois da data programada, muitas vezes perdendo dias de aula e compromissos, mamy perguntou se estava tudo bem, respondi que o tempo nos fez mudar de ideia, sem mais delongas. Quando fomos devolver as chaves da casa tínhamos firmado um pacto, nada falaríamos sobre o meliante, ele nos pareceu mais legal do que o primo furão.

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