quarta-feira, 29 de abril de 2020

Noite fora de Casa


Estava aproximadamente com dez anos, nesta época mamy namorava um iraquiano de nome Ramy, por sinal o mesmo de uma fábrica de sanitários da qual um exemplar habitava em casa e me orgulhava de dar largas esguichadas. Contudo o sujeito não era um simples iraquiano, àquela época seu país era um dos grandes exportadores de petróleo e os “petrodólares” os faziam “reis do mundo”, e este era simplesmente o embaixador do Iraque no Brasil. Isso fazia suas viagens serem constantes, além de sua residência oficial ser em Brasília, portanto eram escassas as visitas à mamy em Sampa, contudo naquele dia ele chegou. Ouvi um telefonema de mamy a minha madrinha pedindo que ela ficasse comigo naquela noite, ficava no mesmo prédio, nós morávamos no décimo andar e ela no décimo oitavo, fiz uma trouxa e fui.
O apartamento apesar de ser igual era bem diferente, explico. Com 180 metros quadrados divididos originalmente em sala, cozinha, área de serviço comprida e estreita, dependências de empregada e três quartos. Após a grande reforma a cozinha e um quarto se agregaram à sala, que ficou bem grande e ocupando quase que metade da metragem total, uma parte da área de serviço foi dividida e deu lugar a uma pequena cozinha, ditando que dali quase nada sairia, o quarto de empregada virou um escritório agregado à suíte e o banheirinho deu lugar a uma despensa, todas essas modificações fizeram do imóvel a cara da dona, leve, prática e simples. Com poucos móveis, um colchão de solteiro de poucos milímetros foi jogado no meio da grande sala e ali estava definido o local de minha acolhida.
Após uma leve refeição e um pouco de papo, a “dinha” e sua filha anunciaram o toque de recolher, ambas foram para seus respectivos quartos enquanto eu me ajeitava no colchão, as luzes se apagaram e iniciou o meu martírio. Passados os minutos de movimento e barulho na casa, esta se silenciou por completo, o novo formato da sala fazia com que houvesse janelas em ambas as faces, sendo inevitável uma corrente de vento que fazia balançar os grandes vasos com samambaias de metro e um cadeirão, parecido com um orelhão de rua, feito em vime e preso ao teto por umas correntes, que também rangiam e se embrenhavam a cada volta da cadeira de balanço. O medo começou a tomar conta de mim, levantei e fui até o som três em um da Sharp e liguei o rádio, assim imaginei abafar os estranhos sons e ainda iluminava um pouco o ambiente. Minha ideia durou muito pouco, segundos depois adentra na sala a filha da “dinha” solicitando de maneira gentil e seca que o aparelho fosse desligado, pois só dormia no silêncio total. Só a sua entrada na sala já fez meu coração, que àquele instante já morava na garganta, fosse seguro pelos dentes, ela era bem magra, alta e com poucos glóbulos vermelhos, era quase uma mistura de boneco de neve com noiva cadáver.
Voltamos à estaca zero, penumbra, silencio e solidão, acompanhada de um local desconhecido, onde parece que seus olhos te levam a ver coisas inimagináveis e objetos inanimados ganham vida e forma. Neste momento aprendi mais uma lição, como o silêncio pode ser tão barulhento. Virava de um lado para o outro, sempre me protegendo com a coberta cedida, não sei ao certo quanto tempo passou, as luzes dos carros passando pela janela já haviam ficado espaçadas. Resolvi ser herói novamente, me levantei pé-ante-pé, fui até à porta de saída e a destranquei como se estivesse diante de um cofre bem guardado, encostei a porta somente no trinco e já estava no hall dos elevadores. Haviam dois, separados pela escada que somente descia pois estávamos no último andar, achei que utilizá-la seria uma péssima ideia então apertei o botão de chamada e aguardei, dava para ouvir as suas portas se fecharem e suas máquinas o fazendo subir os longos e demorados dezoito andares.
Não tirava os olhos da escada, o medo estava quase que se transformando em terror, entrei e apertei o décimo andar. Dentro daquele cubículo só pensava no tempo que demoraria entre sua parada, a abertura da porta, eu conseguir acender a luz e correr até abrir e fechar a porta, com tudo detalhadamente cronometrado na cabeça o elevador aporta no andar. Assim que a porta se abriu saí igual a um foguete, sem olhar para trás, em passos largos somente fui parado pela porta de casa, com a chave na mão destranquei a dita cuja e fiz força para abri-la, nada, tentei novamente e nada, mamy havia passado o famoso ferrolho na porta, talvez por hábito, talvez imaginando minha atitude, tentei tocar a campainha algumas vezes sem sinal de movimento interno, pronto, o caminho de retorno seria inevitável, me virei e fiz o sentido inverso.
Após deitar novamente em meu colchonete e me cobrir até os olhos, comecei a soluçar e a ensaiar um choro, estava com medo e estava triste, triste por estar com medo e por perceber que eu não era tão corajoso como imaginava tampouco quanto imaginavam de mim, essa foi uma de minhas primeiras decepções.

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