Estava aproximadamente com
dez anos, nesta época mamy namorava um iraquiano de nome Ramy, por sinal o
mesmo de uma fábrica de sanitários da qual um exemplar habitava em casa e me
orgulhava de dar largas esguichadas. Contudo o sujeito não era um simples
iraquiano, àquela época seu país era um dos grandes exportadores de petróleo e
os “petrodólares” os faziam “reis do mundo”, e este era simplesmente o
embaixador do Iraque no Brasil. Isso fazia suas viagens serem constantes, além
de sua residência oficial ser em Brasília, portanto eram escassas as visitas à
mamy em Sampa, contudo naquele dia ele chegou. Ouvi um telefonema de mamy a
minha madrinha pedindo que ela ficasse comigo naquela noite, ficava no mesmo
prédio, nós morávamos no décimo andar e ela no décimo oitavo, fiz uma trouxa e
fui.
O apartamento apesar de ser igual era bem diferente, explico. Com 180
metros quadrados divididos originalmente em sala, cozinha, área de serviço
comprida e estreita, dependências de empregada e três quartos. Após a grande
reforma a cozinha e um quarto se agregaram à sala, que ficou bem grande e
ocupando quase que metade da metragem total, uma parte da área de serviço foi
dividida e deu lugar a uma pequena cozinha, ditando que dali quase nada sairia,
o quarto de empregada virou um escritório agregado à suíte e o banheirinho deu
lugar a uma despensa, todas essas modificações fizeram do imóvel a cara da
dona, leve, prática e simples. Com poucos móveis, um colchão de solteiro de
poucos milímetros foi jogado no meio da grande sala e ali estava definido o
local de minha acolhida.
Após uma leve refeição e um pouco de papo, a “dinha” e sua filha
anunciaram o toque de recolher, ambas foram para seus respectivos quartos
enquanto eu me ajeitava no colchão, as luzes se apagaram e iniciou o meu
martírio. Passados os minutos de movimento e barulho na casa, esta se silenciou
por completo, o novo formato da sala fazia com que houvesse janelas em ambas as
faces, sendo inevitável uma corrente de vento que fazia balançar os grandes
vasos com samambaias de metro e um cadeirão, parecido com um orelhão de rua,
feito em vime e preso ao teto por umas correntes, que também rangiam e se
embrenhavam a cada volta da cadeira de balanço. O medo começou a tomar conta de
mim, levantei e fui até o som três em um da Sharp e liguei o rádio, assim
imaginei abafar os estranhos sons e ainda iluminava um pouco o ambiente. Minha ideia
durou muito pouco, segundos depois adentra na sala a filha da “dinha”
solicitando de maneira gentil e seca que o aparelho fosse desligado, pois só
dormia no silêncio total. Só a sua entrada na sala já fez meu coração, que
àquele instante já morava na garganta, fosse seguro pelos dentes, ela era bem
magra, alta e com poucos glóbulos vermelhos, era quase uma mistura de boneco de
neve com noiva cadáver.
Voltamos à estaca zero, penumbra, silencio e solidão, acompanhada de um
local desconhecido, onde parece que seus olhos te levam a ver coisas
inimagináveis e objetos inanimados ganham vida e forma. Neste momento aprendi
mais uma lição, como o silêncio pode ser tão barulhento. Virava de um lado para
o outro, sempre me protegendo com a coberta cedida, não sei ao certo quanto
tempo passou, as luzes dos carros passando pela janela já haviam ficado
espaçadas. Resolvi ser herói novamente, me levantei pé-ante-pé, fui até à porta
de saída e a destranquei como se estivesse diante de um cofre bem guardado,
encostei a porta somente no trinco e já estava no hall dos elevadores. Haviam
dois, separados pela escada que somente descia pois estávamos no último andar,
achei que utilizá-la seria uma péssima ideia então apertei o botão de chamada e
aguardei, dava para ouvir as suas portas se fecharem e suas máquinas o fazendo
subir os longos e demorados dezoito andares.
Não tirava os olhos da escada, o medo estava quase que se transformando
em terror, entrei e apertei o décimo andar. Dentro daquele cubículo só pensava
no tempo que demoraria entre sua parada, a abertura da porta, eu conseguir
acender a luz e correr até abrir e fechar a porta, com tudo detalhadamente
cronometrado na cabeça o elevador aporta no andar. Assim que a porta se abriu
saí igual a um foguete, sem olhar para trás, em passos largos somente fui
parado pela porta de casa, com a chave na mão destranquei a dita cuja e fiz
força para abri-la, nada, tentei novamente e nada, mamy havia passado o famoso
ferrolho na porta, talvez por hábito, talvez imaginando minha atitude, tentei
tocar a campainha algumas vezes sem sinal de movimento interno, pronto, o
caminho de retorno seria inevitável, me virei e fiz o sentido inverso.
Após deitar novamente em meu
colchonete e me cobrir até os olhos, comecei a soluçar e a ensaiar um choro,
estava com medo e estava triste, triste por estar com medo e por perceber que
eu não era tão corajoso como imaginava tampouco quanto imaginavam de mim, essa
foi uma de minhas primeiras decepções.
Nenhum comentário:
Postar um comentário