Acabo de me sentar na
poltrona da sala, velha e confortável, ela já possui em sua memória todos os
meus relevos. O abajur de arquitetura moderna ilumina modestamente o ambiente
totalmente desprovido de qualquer outra fonte de luz. Ao meu lado o copo de
Jack, que outrora um grande amigo (Al Pacino) o chamou de John pela sua
intimidade, sendo assim sou íntimo de ambos. A outra mão segura um barato
charuto baiano, provavelmente enrolado numa fria máquina de aço e polias, ai
que saudade das quentes coxas cubanas, ainda retorno aos cubanos. Retiro
lentamente uma folha dobrada do bolso, ela contém uma lista de acontecimentos
da minha vida, tudo que acontece de interessante ou inusitado vai para a lista,
certo que o preenchimento das linhas estão cada vez mais raros, não sabia que a
idade iria pesar nisso também. Corro os olhos para escolher alguma que possa
compartilhar nestes contos, não são todas que já estão liberadas, algumas
esperam a corrida da morte, entre o protagonista e quem vos escreve, torçam por
mim caso queiram que sejam reveladas.
Esta, além de já estar liberada, não por óbito, mas por afastamento
social (por sorte de ambos) acredito ser oportuna somente pelo calendário. Era
Natal.
Durante os meus quarenta e poucos anos de vida, tradicionalmente passei
os Natais em Bauru, junto a meus parentes próximos e ainda uma família que
também chamávamos de tio, tia e primos, pela proximidade e amizade que vinha da
ancestralidade. Noite na casa deles, almoço na casa do meu tio. Sempre
chegávamos por voltas das oito da noite, sentávamos à mesa da varanda e
iniciávamos o processo de embebedamento e piadas, divididas preferencialmente
entre meus primos (o real e o falso) e eu, a partir das nove horas todas eram
engraçadas, ou já ríamos de tudo, não sei mais.
Este ano teria uma novidade, a prima falsa havia se casado há um mês,
por motivo profissional não pude comparecer à cerimônia e, obviamente, não
conhecer os parentes do noivo. Seu marido era um rapaz muito educado e
divertido, já estava aprovado para dividir o espaço de tempo no entretenimento
familiar. A novidade era que a família do noivo nos acompanharia nesta ceia
natalina, diga-se de passagem, planejada e montada com esmero e capricho pelas tias
que muito disputavam os elogios durante o banquete, tanto pelo paladar quanto
pela decoração.
À mesa sentados os primos e tios, o relógio já iria badalar as vinte e
duas horas e as piadas e histórias estavam eufóricas, a vez era disputada quase
que a apunhaladas verbais, nesse momento chegam os pais do noivo, convidados de
honra daquele ano alegre, não só pela data que estávamos comemorando, mas
também pelo enlace do novo casal. A turma dos mal-educados cumprimentou o velho
casal com os levantares de braço e brindes com seus copos meio vazios e melados
de tantas idas e vindas, e sentaram à ponta oposta da mesa.
Pela ordem dos gritos chegara novamente minha vez de falar, ou melhor,
o show time, havia guardado para esta hora o melhor, uma das piadas que estavam
bombando na capital e certamente seriam o furor do verão caipira...
“O garoto sai com a bela moça que possuía uma estranha deficiência, ela
não tinhas nenhuma das duas pernas, mas isso nem se dava a notar, tamanha a
beleza, inteligência e meiguice. O garoto logo se apaixonou e, na volta para a
casa, a beijou freneticamente. As carícias foram aumento de grau até que ela o
empurrou e, ofegante, o convidou para um passeio no bosque ao lado de sua casa.
Intrigado o rapaz perguntou o motivo, a bela jovem explicou que lá havia uma
árvore, onde ele poderia pendura-la e assim, consumar o coito, foi feito. Ao se
deitar o rapaz não parava de pensar na idiotice que acabara de fazer, afinal em
sua cabeça como ele poderia ter tido tal atitude com uma jovem tão bela e pura,
prontamente correu até a casa dela e tocou desesperadamente a campainha. Ao
abrir a porta vem a figura do pai da moça, com cara de poucos amigos pelo
exagero, mas antes de poder dizer uma palavra foi interrompido pela história do
rapaz, que finalizou dizendo que gostaria de casar com sua filha. O pai sorriu,
deu dois tapinhas nas costas do garoto e o orientou que fosse para casa, ainda
agradecendo a gentileza e finalizando com um: não se preocupe jovem rapaz, pior
são os filhos da puta que largam ela pendurada na árvore.”
... Ninguém deu um sorriso sequer, um silêncio me fez achar que já
estávamos em época do politicamente correto, não estávamos, mas achei estranho
não terem gostado da piada, como o silêncio reinava emendei outra, a de um
jogador manquitola que fazia e acontecia em campo, essa plagiada de um show do
velho Chico (o Anysio, vê-se que também somos íntimos). Ao fim das duas piadas
minha tia falsa se levantou e gritou, está na mesa, vamos.
Não sei o que achei mais estranho naquele momento,
se a ceia sendo servida tão cedo ou se a cena da mãe do noivo pegando sua
muleta e saindo da mesa mostrando que não possuía um dos membros inferiores.
Nunca mais os vimos nos natais.
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