quarta-feira, 29 de abril de 2020

Era Natal...

Acabo de me sentar na poltrona da sala, velha e confortável, ela já possui em sua memória todos os meus relevos. O abajur de arquitetura moderna ilumina modestamente o ambiente totalmente desprovido de qualquer outra fonte de luz. Ao meu lado o copo de Jack, que outrora um grande amigo (Al Pacino) o chamou de John pela sua intimidade, sendo assim sou íntimo de ambos. A outra mão segura um barato charuto baiano, provavelmente enrolado numa fria máquina de aço e polias, ai que saudade das quentes coxas cubanas, ainda retorno aos cubanos. Retiro lentamente uma folha dobrada do bolso, ela contém uma lista de acontecimentos da minha vida, tudo que acontece de interessante ou inusitado vai para a lista, certo que o preenchimento das linhas estão cada vez mais raros, não sabia que a idade iria pesar nisso também. Corro os olhos para escolher alguma que possa compartilhar nestes contos, não são todas que já estão liberadas, algumas esperam a corrida da morte, entre o protagonista e quem vos escreve, torçam por mim caso queiram que sejam reveladas.
Esta, além de já estar liberada, não por óbito, mas por afastamento social (por sorte de ambos) acredito ser oportuna somente pelo calendário. Era Natal.
Durante os meus quarenta e poucos anos de vida, tradicionalmente passei os Natais em Bauru, junto a meus parentes próximos e ainda uma família que também chamávamos de tio, tia e primos, pela proximidade e amizade que vinha da ancestralidade. Noite na casa deles, almoço na casa do meu tio. Sempre chegávamos por voltas das oito da noite, sentávamos à mesa da varanda e iniciávamos o processo de embebedamento e piadas, divididas preferencialmente entre meus primos (o real e o falso) e eu, a partir das nove horas todas eram engraçadas, ou já ríamos de tudo, não sei mais.
Este ano teria uma novidade, a prima falsa havia se casado há um mês, por motivo profissional não pude comparecer à cerimônia e, obviamente, não conhecer os parentes do noivo. Seu marido era um rapaz muito educado e divertido, já estava aprovado para dividir o espaço de tempo no entretenimento familiar. A novidade era que a família do noivo nos acompanharia nesta ceia natalina, diga-se de passagem, planejada e montada com esmero e capricho pelas tias que muito disputavam os elogios durante o banquete, tanto pelo paladar quanto pela decoração.
À mesa sentados os primos e tios, o relógio já iria badalar as vinte e duas horas e as piadas e histórias estavam eufóricas, a vez era disputada quase que a apunhaladas verbais, nesse momento chegam os pais do noivo, convidados de honra daquele ano alegre, não só pela data que estávamos comemorando, mas também pelo enlace do novo casal. A turma dos mal-educados cumprimentou o velho casal com os levantares de braço e brindes com seus copos meio vazios e melados de tantas idas e vindas, e sentaram à ponta oposta da mesa.
Pela ordem dos gritos chegara novamente minha vez de falar, ou melhor, o show time, havia guardado para esta hora o melhor, uma das piadas que estavam bombando na capital e certamente seriam o furor do verão caipira...
“O garoto sai com a bela moça que possuía uma estranha deficiência, ela não tinhas nenhuma das duas pernas, mas isso nem se dava a notar, tamanha a beleza, inteligência e meiguice. O garoto logo se apaixonou e, na volta para a casa, a beijou freneticamente. As carícias foram aumento de grau até que ela o empurrou e, ofegante, o convidou para um passeio no bosque ao lado de sua casa. Intrigado o rapaz perguntou o motivo, a bela jovem explicou que lá havia uma árvore, onde ele poderia pendura-la e assim, consumar o coito, foi feito. Ao se deitar o rapaz não parava de pensar na idiotice que acabara de fazer, afinal em sua cabeça como ele poderia ter tido tal atitude com uma jovem tão bela e pura, prontamente correu até a casa dela e tocou desesperadamente a campainha. Ao abrir a porta vem a figura do pai da moça, com cara de poucos amigos pelo exagero, mas antes de poder dizer uma palavra foi interrompido pela história do rapaz, que finalizou dizendo que gostaria de casar com sua filha. O pai sorriu, deu dois tapinhas nas costas do garoto e o orientou que fosse para casa, ainda agradecendo a gentileza e finalizando com um: não se preocupe jovem rapaz, pior são os filhos da puta que largam ela pendurada na árvore.”
... Ninguém deu um sorriso sequer, um silêncio me fez achar que já estávamos em época do politicamente correto, não estávamos, mas achei estranho não terem gostado da piada, como o silêncio reinava emendei outra, a de um jogador manquitola que fazia e acontecia em campo, essa plagiada de um show do velho Chico (o Anysio, vê-se que também somos íntimos). Ao fim das duas piadas minha tia falsa se levantou e gritou, está na mesa, vamos.
Não sei o que achei mais estranho naquele momento, se a ceia sendo servida tão cedo ou se a cena da mãe do noivo pegando sua muleta e saindo da mesa mostrando que não possuía um dos membros inferiores. Nunca mais os vimos nos natais.

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